30.9.24

Tolos

A voz assanhada

entreabre os poros 

e impetuosa abeira-se

dos vadios sem rosto. 

 

Conta enredos mestiços

na cortante intimidade

em que se levantam os olhos

um contrabando sem pena. 

 

Ávidos de histórias

os mecenas retiram fração

de um êxtase sem parágrafo

a moldura para memória futura. 

 

No trono das desfeitas

contam-se os contratempos

a usura que nos mete em bolsos

numa despátria que agradecemos.

Injustiças indocumentadas (437)

A hora era de ponta 

mas não era de mola.

#3277

Na pele 

o alfabeto dourado 

que sobe no púlpito 

da manhã. 

29.9.24

Revelia

Teces as lágrimas

no mosto da maresia. 

As avenidas largas,

o idioma que atravessas

no musgo que se aviva nas pedras antigas. 

No rumorejo da manhã

arrematas a esquálida impressão da angústia:

não te demovem os fantasmas 

que à revelia se entontecem 

com as estrofes que saem da tua boca;

se pudesses 

calavas os indignos que cavalgam nas notícias

a única forma de censura admitida a concurso

para às pessoas legares 

o des-pesar da alma arqueada. 

Não dás ao sono uma capitulação. 

Se não puder ser pelos modos propostos

será com a mediação do fingimento. 

Nessa altura

todos saberão o segredo

do exílio sem mudar de pertences.

28.9.24

#3276

Um ziguezague furtivo 

finta o ocaso militante

adultera a noite 

com uma promessa de voz.

27.9.24

Ao circo

Um litro de farsa,

era

por obséquio. 

Sentia o sangue impronunciável

a querer meter o gancho no garrote

para não escorrer num frenesim escolástico

até atingir 

o imperturbável estado de estátua;

antes que fosse possível

as vendas foram consumidas por térmitas 

o do coldre saltou

excitado

o revólver acusado:

e todos aceitavam

antes fazer de conta

do que contar 

cadáveres daqueles com direito a sepultura. 

Depois disso 

alguém bolsou consoantes

(as vogais ficaram a cimentar as proteínas). 

As náuseas

não são objeto de disfarce.

Injustiças indocumentadas (436)

Massage 

in the bottle.

#3275

A noite 

na sua frágil janela 

esconde-se do medo.

26.9.24

Injustiças indocumentadas (435)

Contas os números 

mas os números 

não te contam nada.

Injustiças indocumentadas (434)

Deu uma volta ao mundo 

e o mundo 

agradeceu tanta generosidade.

#3274

À boca do lobo 

os verbos famintos 

na cerca dos estouvados.

25.9.24

#3273

Por conta dos dedos 

que amaciam o dia 

como se a pele sonhasse 

com os sonhos avivados na carne. 

24.9.24

Efeito rolha

Se são atirados os dados 

e uma confissão amanhece 

em vez das paredes caiadas

avivando mentiras hibernadas 

o tecido anquilosado

ou as bermas que não chegam a páginas 

fingem os fingimentos 

os fígulos sem juras anotadas 

no célere embasar da lua admirada.

#3272

Agarrados à loucura em embrião

somos mediadores dos disfarces 

os melhores embaixadores do não-eu.

23.9.24

Ponto; e vírgula

As aldeias falam cedo de mais.

Balbuciam as palavras perdidas 

as que as viúvas apanham do chão.

Das artes deixadas sem legado 

torna-se o futuro procurador; 

as horas socorrem o enfado 

e os velhos já não se arrastam 

nas mesas dos cafés 

na língua comprida 

de quem muito a exercita

na viuvez dentada que arpoa outro dia.

São estas suíças mal aparadas 

e os xailes descuidados

que rimam com a canseira da velhice. 

Os outros 

ainda só aspiram ao envelhecimento,

tão ingénuos e inglórios.

#3271

Deixa estar o futuro 

no lugar a que pertence.

22.9.24

#3270

O elixir dança 

nas veias embuçadas

destrona o vício da vida descendente.

21.9.24

#3269

As lágrimas chamam por um lenço enxuto 

as armas pedem um lençol desembargado.

20.9.24

Injustiças indocumentadas (433)

As pessoas 

fogem a sete pés, 

embora só tenham dois.

Injustiças indocumentadas (432)

amigos do peito; 

e do resto?

#3268

Não mandem 

os mastins ao dentista, 

precisamos da carne intacta.

19.9.24

Pétalas dançantes

Despejo o fogo perdido no coldre puído. 

As entranhas sacodem as orações avulsas. 

Não foi em vão o destino à míngua de bússola. 

O amanhecer irradia os rostos adiados. 

Alguns fazem-se adidos das esculturas perenes:

se pudessem também eram perenes;

se soubessem, antes ficassem como são. 

Os arruamentos são como muralhas;

escondem dos corsários as incontinentes misérias. 

Escondem-se envergonhadas pelo que não são. 

Fogem dos dias alumínios que roçam as arestas. 

A carne viva cuida das cicatrizes 

no provável silêncio. 

Não são a matéria apodrecida que dança 

no avesso das ondas. 

Não são o ciciar espectral que denomina o medo. 

O xisto endurecido é a cama para a fala continua. 

A encomenda dos pesares não precisa de procurador. 

Destemidas as almas que voam no sonho dos dias 

no lugar onde o medo se extinguiu 

e o arnês ficou vago.

Injustiças indocumentadas (431)

Há os que cantam 

e seus males espantam 

e os que cantam 

e em nós males semeiam.

#3267

A pedreira desbastada, 

um soro que foi dissolvente.

18.9.24

Anti manual de qualquer coisa

Não sei ser 

o emparedado busto 

que os senadores ditam 

além das sepulturas que os esperam.

 

Não sei dar 

palmas válidas

aos pavoneados escultores da fama 

sem ser por derruído abuso.

 

Não sei acolher 

as musas sem refrão 

que os engenheiros da opinião obrigam 

a não ser por profissional impostura.

#3266

Um meridiano, 

para não amornar 

os extremos.

17.9.24

Lupa

A pele suada corre para o precipício. 

Extasia-se, 

quando centelhas do dia corrompem a luz

e um diário se antecipa ao lugar dos deuses. 

Dizes

somos neutrais 

às profundezas em que se divide o mundo;

terrivelmente céticos

arranjamos o desmedo como modo de vida

em vez de sermos parturientes de achados

procuradores

das grandes teorias que simplificam o mundo,

as teorias que insultam o mundo

que sabemos ser incapaz de caber

em duas dúzias de palavras. 

Cobramos ao mar arrefecido

o alumínio que ferra a boca

a ossatura em que se fingem proezas;

anexamos apenas 

aqueles pequenos pedaços de pele

que ainda não tinham suado num beijo. 

E povoamos o dia 

com um copo de vinho

um poema indelével

a recordação de uma peça de teatro

toda a alquimia de que fomos autores

e toda aquela que os dias irascíveis saberão ter

por deixarmos 

em tatuada batuta mestra

as estrofes que dispensam fala

a amostra das palavras que colhem das árvores

as invisíveis armas a favor da indiferença. 

Injustiças indocumentadas (430)

Também

de conservadores de esquerda 

há notícia, 

habitam nos registos.

#3265

Hoje 

abraço uma janela 

que transige o luar.

16.9.24

Conta quilómetros

Despenteio o pensamento pesado

dou ao dia o desacontecimento grelhado

e na vetusta vitrine que viaja sobre o envelhecer

desato os pontos emaranhados

vírgulas em excesso avivando os vieses de outrora.

 

Vejo que não me valido nesses preparos

desejo que se deseja no desacato dos costumes

em sistemáticas perguntas que assimilam o saber 

em vez do harpejo que desarruma as lantejoulas

em equívocos acamados numa doca seca.

 

Vejo-me

na distância que há de mim aos lábios desalinhados

numa linha constante

desenhada por lídimos embaixadores

eles ou eu

no primeiro salto por cima do abismo

até encontrar 

as folhas desmatadas entre as mãos.

#3264

Deitam-se os faróis 

sobre a matéria válida do entendimento 

e nem assim 

a luz se abate sobre o dia timorato.

15.9.24

#3263

Somos muito dados aos ismos 

até nos tornarmos istas 

sem darmos conta das prisões

a que nos abraçamos. 

14.9.24

#3262

Na pose de abadessa 

com a pança opada 

de quem não se enfarta 

com o aroma do poder.

13.9.24

Injustiças indocumentadas (429)

Não dês a palavra 

que depois 

não ta devolvem.

Censo

Só de cedo ser

cego as certezas sábias

na seara onde sobra o sono

que pela certa sou incerto

e sondo os sinos assombrados

para ao serão soltar um seráfico sorriso

e ao sabor das sílabas

saber

o sabor incensado do saber

que não se encena.

#3261

O farol aceso 

mascara a noite 

com mil disfarces 

ao arrepio da mágoa.

12.9.24

#3260

Bebem pelas medalhas 

ufanos 

legitimamente,

antes não lhes vistam à força 

a bandeira.

11.9.24

Injustiças indocumentadas (428)

De um golpe alto

ninguém fala 

em protesto.

Injustiças indocumentadas (427)

Spin,

doctor.

#3259

No rebordo do dia 

o silêncio sobe 

ao veio dos sonhos.

10.9.24

Injustiças indocumentadas (426)

Na missa campal 

voaram salmos 

esgrimiram-se orações 

e as redenções andaram em saldo. 

#3258

Um cabresto 

para o gongórico 

a bem da humanidade.

9.9.24

Ambivalente

Um estorvo que não é daninho

a água fruída pelos lábios porosos

a caxemira que se entreteve nos dedos

o sobressalto herdado de um tempo remoto

os olhos lunares atravessados na estrada

a maré alta sem mastro onde hastear

as obras peregrinas que inventam a cidade.

Injustiças indocumentadas (425)

A sociedade está fraturada.

Abram alas aos ortopedistas.

#3257

Escoltas

sob o tédio exorcizado 

a maresia das palavras combustíveis.