20.4.20

#1512

[Crónicas do vírus, LXXVIII]

Teoria da conspiração (epílogo):
a doença distribui alucinação
em doses equitativas.

19.4.20

#1511

[Crónicas do vírus, LXXVII]

Teoria da conspiração (2):
a doença é de esquerda
e proibiu a páscoa.

#1510

[Crónicas do vírus, LXXVI]

Teoria da conspiração (1):
a doença é de direita
e quis sequestrar abril.

Estilhaços de um paraíso fantasiado

Por ajuste direto
nos contratos arquivados
sem diligente ato notarial
os regentes combinam 
as mercês.
Não se diga de terra assim
que se confina ao mofo da corruptela
por viés de consideração
ou manifesto cânone de má-fé:
os regentes fazem-se pagar
pelos prestimosos serviços à turba
e da turba se há de esperar
reconhecimento e genuflexão 
– ou silêncio, na pior das hipóteses – 
sob pena de perjúrio ser perpetrado.
Até porque
se pudesse
a turba amesendaria no lauto manjar
onde se combinam as prebendas
onde as esconsas combinações têm palco
com subterrâneas criaturas por testemunhas.
Por ajuste direto
as baias da corruptela
a que por decência
ou provável delito coletivo
(por participação em proveito próprio
ou cumplicidade por inação
ou inveja por não serem coatores)
todos são compadres.

#1509

[Crónicas do vírus, LXXV]

A distância
até ao tempo certo
é a paciência.

#1508

[Crónicas do vírus, LXXIV]

A nomenclatura da normalidade
espevita o povaréu.
(A destempo?)

18.4.20

#1507

[Crónicas do vírus, LXXIII]

Nem todos os terramotos
aparecem no sismógrafo.

O invasor sem rosto

O sangue
cortado ao meio.
Uma linha indivisa.
O radar à procura de sombras,
a maior das estultícias.
“Não te esqueças de viver”
a capa do livro
em forma de mnemónica
como se aos lúcidos
houvesse na camada do tempo
um esquecimento sobre o viver.
Os lustres desfilam 
num pano hasteado
contra o plano inclinado
e o esquecimento geral de tudo,
ou como se tudo se consome
no instante de um fósforo
sem paradeiro.
O caudal espera.
Espera pelo sangue
devolvido ao seu uníssono.

17.4.20

#1506

[Crónicas do vírus, LXXII]

Como podemos morrer na praia
(advertência de S. Marcelo)
se a praia está proibida?

Wake up call


https://www.youtube.com/watch?v=Fl3WtUrfEyo

[Johánn Johánnsson, “Good Night, Day”]

No esconderijo da noite
subi à véspera da lua
esperei 
enquanto era dia
enquanto o verbo não adormecia:
e disse
que podia ser o acontecido
sem que o seu avesso fosse maldição
ou as estrelas que despontavam
páginas à espera de escrita.
Não sabia do sortilégio da rua
e da varanda privilegiada
sabia ser testemunha de tudo
e do nada que de mim se açambarcava.
Valeu-me a modesta ambição,
ou diria,
a desambição assentada em luvas de esgrima
sem que dos penhores quisesse um módico
sem que nos lagos ensombrados
traduzisse as palavras apagadas.
Do esconderijo da noite
enquanto terçava o rosto contra o frio
contei as estrelas
uma a uma;
inventariei os demiúrgicos sentidos
no piano por estrear
com uma voz sibilina como palco
e os meus olhos
insuperáveis
contra a matilha 
do venal arrefecimento dos sentidos,
a anestesia incombustível
com a desistência pelo meio.
Angariei a resistência precisa
e de cais em cais
vi transfigurações das palavras
como elas deixavam de ser significante
e se entronizavam metáforas.
A mim trouxe o método impreciso
a pele gasta, 
mas à prova de rugas
e dos cabelos agrisalhados 
tirei a matriz das coisas 
que não hesitam em sua imensa beleza.

Evoquei as manhãs vagarosas
quando o corpo não sabia de fronteiras
e a lucidez ganhava no parapeito da demora.

E esperei.

#1506

[Crónicas do vírus, LXXII]

Como podemos morrer na praia
(advertência de S. Marcelo)
se a praia está proibida?

#1505

[Crónicas do vírus, LXXI]

Inventar milagres,
cortesia de S. Marcelo.

#1504

[Crónicas do vírus, LXX]

Não querem a morte da cura,
os velhos,
abraçando-se à morte da doença.

16.4.20

Moscovo

Vejo 
a cidade espartana
as pessoas indiferentes
o frio que fere
o silêncio dilacerante
a neve profícua
e vejo
a luminosidade que clareia a noite
os monumentos que exsudam exotismo
o frio que conserva
os vestígios da arquitetura imperial
a aventura da incomunicação.
Vejo
o despoder do avesso
as paredes que conservam 
sinais pretéritos
o paradoxal obnubilar do passado
com metamorfose no cânone hodierno.
Vejo
um lugar que se entranha,
seráfico. 

#1503

[Crónicas do vírus, LXIX]

Quando abril
foi constrição
à liberdade.

#1502

[Crónicas do vírus, LXVIII]

Reduzidos
à família
minimalista.

15.4.20

#1501

[Crónicas do vírus, LXVII]

Agora somos máscaras.
A beleza e a feiura
saíram de circulação.

Filantropia

Não me atirei ao penhor das coisas
que o amanhã estava em espera
e as vozes cavernosas 
pilotavam o pensamento.
Julgava uma certa forma de refém
o modelo precatado no sombrio palco;
mas era outra a constelação
onde ciciavam os parentes ricos da fortuna
os que levitavam numa auréola assídua
a mnemónica sem descanso
verso propositadamente inacabado.

Não era um abismo que amputava a fala.

As coisas modernas desenham-se
na sua frágil efemeridade:
esse é o seu segredo
o magnete sobre uma multidão constante.

Os arbustos agitados
perfilhavam o vento como discípulo dileto
encenando uma coreografia díspar
no santuário sem seguidores, 
de onde furtei às escondidas
a outra parte da alma em falta. 

#1500

[Crónicas do vírus, LXVI]

Estas estradas
não foram feitas
para este deserto de veículos.

14.4.20

#1499

Os males que vêm por bem:
agora
somos paradigma
epílogo homérico.

Antologia

Qual é a tua metáfora favorita?
Aquela 
do ar cheio de sol
que não deixa a pele constituir-se ruga.
Ou aquela
da ardósia militante 
que se insubordina contra a extinção
e esbraceja uma espada sem lâmina.
Podia, ainda,
avançar com a hipótese destoutra:
a parda noite
covil de vultos
refúgio das almas gentis
que hibernam durante a noite
e a deixam para os vultos errantes.

Não sei 
se tenho metáfora favorita.
E essa talvez seja
a minha metáfora favorita.

Deixa que diga
em abono da sinceridade
que clareio os olhos
(como se tomasse um colírio)
ao pressentir a nortada austera
e às ondas que descompõem o mar
junto a fúria das minhas mãos gastas.
Não sei se será admissível
ao concurso das metáforas
mas esta passa a ser 
a minha antologia.

E tu, 
já sabes os alinhavos 
da tua antologia?

Tenho de ir ao dicionário
E depois continuamos a conversa.
Prometo.
Em nome do dicionário.

#1498

[Crónicas do vírus, LXIV]

Princípio geral da imobilização.

#1497

[Crónicas do vírus, LXIII]

O sofá 
vale
ouro?

#1496

[Crónicas do vírus, LXII]

A ausência
elevada a regra.

#1495

[Crónicas do vírus, LXI]

Entre 
quem muito procura o saber
e os que não sabem o que não sabem.

13.4.20

As mãos suadas pelo passado

O inventário da lua
à luz do dia
tradução da alma amuralhada.
As cinzas não sobram
no planalto dos sonhos.
Prováveis peões em trovas alheias
oferecem-se na pior das generosidades:
a útil idiotia que os veste
não transige no harmónio da razão
(o que quer que seja a razão)
e o bazar dos inquisidores
não hesita na opressão.
O inventário da lua
arruma as teias armiladas
os coices amontoados
no poço do esquecimento
o tear com as cadeiras destroçadas
uma lágrima vestida no firmamento.
Não se luta
se não a favor da vontade.
O arquétipo sem omissão
entre duas mãos suadas pelo passado.

#1494

[Crónicas do vírus, LX]

O que é feito
dos vícios de rua?
(Meirinhos da moralidade 
vingados pela mão favorável 
da praga.)

#1493

[Crónicas do vírus, LIX]

Lá fora
uma tela baça,
a preto e branco.

12.4.20

Retórica

Conta
o que não é dito
na mesma medida
do que é dito?
E entre
o dito e o não dito
há intermediário,
exegeta capaz do sonho
a não banal escavação
das palavras intuídas?
Ou tanto faz
dar o dito pelo não dito?

#1492

[Crónicas do vírus, LVIII]

A higiene
tornou-se canónica.