10.5.20

Avental

Pirómanos
sem saber
vultos amordaçados ao devir
sobem aos rostos 
à procura do dia.

Nem que todos os vulcões
latissem em protesto
e os fiordes amornassem
os párias seriam estetas
e as viúvas
senhoras de silêncios.

O cabo estreita-se sobre o mar
ermo
e as dádivas foram sonhos
uma praça vazia 
no meio do luar.

#1556

[Crónicas do vírus, CXXII]

Há sempre céu
no azul do mundo.

9.5.20

Um espelho

O olhar
é um espelho sem avesso
a olhar-se por fora 
sem saber o que vê
a não ser
a invasão de outro avesso.

#1555

[Crónicas do vírus, CXXI]

Os novos alinhavos da semântica:
estar encurralado
deixou de ser um mal.

8.5.20

#1554

[Crónicas do vírus, CXX]

A indústria
dos historiadores do futuro,
com a corda toda.

Desbotado

Chanceler de seu murado pesar
passava os dedos pela lousa
onde fora aprendente.
Desmentia-se
na urgência de resgatar 
um pedaço da infância:
do rosto que seu era na meninice
não descobriu o paradeiro
ao deitar os olhos
aos retratos dos escolares de anos vários.
Não era proveito ter-se tornado lente
que outra é a sua audiência
já sem a inocência dos pueris 
que litigavam em jogos artesãos no recreio.
Lente com lastro
menos entendia as juras sempre descumpridas
como se a maior sua diligência
fosse a contradição interior.
Ao menos
que ninguém o acusasse de não tentar.
Ao menos
não se entediava no fuso da letargia.
Na noite consecutiva
em sonho o rosto menino seu
coalesceu em revelação
e levantou-se como a erupção de um vulcão
o coração saltando para as mãos
por dar conta que 
afinal
aquele era o rosto que lhe pertencera.
No dia seguinte
confidenciou:
a idade leva-nos tudo.
Até o rosto de que éramos meninos.

#1553

[Crónicas do vírus, CXIX]

Uma 
nova
época?
(Ou 
antes pelo contrário?)

#1552

[Crónicas do vírus, CXVIII]

Um relógio
a marcar passo.

7.5.20

Legionários

Aprendiam 
a ser legionários
impecáveis tarefeiros da demência 
sem rosto

(a demência
e deles, legionários,
que sobram como anónimos
nas fotografias) 

– a “carne para canhão”, 
como é dito pela voz do povo.

Aprendiam.
Com o beneplácito das cicatrizes
os membros amputados
o sono perdido a caminho do hospício
a lura de um cavalo lilás
cavalo a arrotear os rochedos
no cabo que se despenha sobre o mar.

Nunca acordavam do pesadelo
os legionários amestrados.

Nunca se desprendiam da liturgia:
um soldado
não é gente com direito de gente
é carne para canhão
o sangue oferecido num banquete elegíaco 
onde os generais amesendam
e se servem dos ossos e sangue
em legado deixados
pelos legionários partidos
e ainda assim
decaem na impureza das almas menores.

#1551

[Crónicas do vírus, CXVII]

Somos todos
uma máscara só.

#1550

[Crónicas do vírus, CXVI]

Uma distopia, 
o ato criador
de outra distopia?

6.5.20

Declaração

Declaração:
os soldados que patrulham o sono
não estão de atalaia
e uma voz cavernosa segredou-me
que os sonhos iam voar 
para lugares sem paradeiro.

Declaração:
fiz saber 
que não temia a ocorrência
e estava em êxtase
à espera do próximo sono
para dele extrair um inventário.

Declaração:
diligentes,
os soldados voltaram 
à torre de menagem,
e deles foi a cautela do sono
prevenindo os sonhos sem freio.

Declaração:
estou certo de querer
encomendar os soldados
a antecipadas férias
ou à reforma sem substituição
para dos sonhos rebeldes tomar o mosto
e em seu diadema 
não deixar de suar um vertical suão
em sucessivas corolas tiradas à orfandade.

#1549

[Crónicas do vírus, CXV]

Atordoados
pela boca vertiginosa
dos que assovinham
gongórica eloquência.

#1548

[Crónicas do vírus, CXIV]

Agora 
que o exílio interior 
começa a contar os dias para a finitude
é o fim da autodeterminação?

5.5.20

Tratados

Tratados os tratados
ficaram em pé
as notas de rodapé.
Um copo de vinho
pois 
as gargantas ficaram secas
de tanto escreverem.
Os tratados
tratam de tresmalhar
os trastes
e vingam a aporia
a ingente suficiência que locupleta
almas prevenidas.
Do sopeso das cláusulas
soabriu o peso pluma das vírgulas
todas 
metodicamente
no sítio
sobre a tenência da substância,
esquecida para outras núpcias.
Os tratados
diligentemente assinados a tinta-da-china
trataram de ficar à guarda
dos imorredoiros halteres
força báscula
sobre a teimosia dos recalcitrantes. 
Os tratados
peticionavam contra as enxovias
os despudorados ultrajantes da palavra dita
os boçais que não sabem dos lugares.
Em novelos amiúdes,
os tratados
devidamente tratados pelos tratadores,
inundavam o chão granítico
com a heteronímia dos vultos penhores.
Não havia fortuna maior.

#1547

[Crónicas do vírus, CXIII]

Não há aviões
a desenhar o céu
para perguntarmos
aonde nos levariam.

#1546

[Crónicas do vírus, CXII]

Em câmara lenta,
no levantamento da cerca
na ressaca do auge.

#1545

[Crónicas do vírus, CXI]

“Não sabemos como vai ser o futuro”
(concede o anónimo na televisão).
Dantes
já não sabíamos.

4.5.20

Ressonância magnética

Na cortesia com cor de chumbo
corteja-se a franquia da alma
em reverberadas disputas interiores
hemisférios dados a pleitos intermináveis
e a fauna a agigantar-se
contra os muros intempestivos do tumulto.

Cortejam-se
os telhados virados ao sol
sem consagrar mistificações dos deuses
sem escutar pregões arrebatados 
de lenhadores amestrados
sem o contágio
das plumas de pavões imorredoiros
a humildade metodicamente alinhavada.

A planície levanta-se 
sobre as sombras da tarde.
Os dedos 
é como se levitassem
nas teclas de um piano
e o chão espasmódico,
imprevidência à escuta,
não tergiversa sob o piano incolor.

Ao planalto 
que afere o horizonte
as notas levam um murmúrio.
E eu
deste lado
à espera do eco.

#1544

[Crónicas do vírus, CX]

“Confinamento pôs mais gente a praticar actividade física.” (Publico)

Uma quarentena,
para dobrar o braço 
ao sedentário espécime.

#1543

[Crónicas do vírus, CIX]

Repovoamento
descarnado
descarado.

3.5.20

Alerta

Parla
vento
não amornes o espólio
não te tornes
barlavento. 

Serve 
eu teu cálice
o melífluo pesar
antídoto
contra sobrancelhas
oníricas. 

Remata
com o vulcão aceso
uma fortificação
sem pântanos à ilharga. 

Espera
no arco-íris sem demora
que o rosto seja teu
a taluda maior
em teu inventário.

#1542

[Crónicas do vírus, CVIII]

As palavras
que deixámos
de dizer.

#1541

[Crónicas do vírus, CVII]

Vinte e sete graus.
E o governo não proibiu
vinte-e-sete-graus?

2.5.20

#1540

[Crónicas do vírus, CVI]

Maus vão os tempos
para vícios e dissoluções
e bons estão
para estetas da moralidade.

Profusão


This Mortal Coil, “Carolyn’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=p8eHP9NjeVM

Que nome te dou?
            Maresia,
para saberes que a boca
não é fingimento
e do sal hasteado
se funde a matéria do desejo.

Que nome te dou?
            Clepsidra,
para a mim chegar
o pulsar do teu sangue
e dele tomar medida 
sem ser a destempo.

Que nome me dás?
            Luar,
por saberes que a luz diáfana
cumpre o lugar
na pele que deixo à mostra.

Que nome me dás?
            Farol,
para em ti pousar
o vento da minha boca
e no teatro em que de mão juntas vamos
não ser nunca tarde 
o amanhã que constar.

#1539

[Crónicas do vírus, CV]

Afetos em maré baixa,
a caminho de sermos
nórdicos?

1.5.20

Desamanhecer

O lado certo
é incógnito
o abissal desembrulho
sem cordas por saber. 
As mangas da noite
é que têm razão:
(o desejo de) hibernação
um refúgio nas ombreiras do vento
o rapto do precipício
em novelos de bruma visível
convidam 
ao pesar dos alinhavos 
o forte com farol de atalaia
aos mastins que levam à boca
o pedaço da carne negligente. 
O lado errado
também é incógnito
uma manta sem idem
no rosto seráfico dos promitentes anjos
não fossem as asas cambas
em sua denúncia. 
Destinei ao improvável
a casta dos melhores (desejos)
a indumentária que me apessoa 
no contingente desenho
do leito em pródigo caudal.

#1538

[Crónicas do vírus, CIV]

As revoluções
ficaram 
adiadas.

#1537

[Crónicas do vírus, CIII]

Dos viciados na “normalidade”,
os curtos de espírito:
Ah! o “regresso à normalidade”.