13.8.20

#1696

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

O que perdemos

foi o que nunca tivemos.

12.8.20

Fumeiro

Na minha cabeça

Madagáscar

rima com

Gibraltar.

 

É tão lúcido

como aquela frase feita

 

“éramos tão felizes e não sabíamos.”

 

No fundo,

nunca saberá

se o caviar vem do esturjão

ou 

se é obra de um intrujão.

#1695

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

A interminável História

de paradoxos

projeta-se no futuro: 

em vez de rumo com remo

tribalismo compulsivo.

11.8.20

#1694

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

Os vultos seráficos

consomem a lucidez

que só foi delusão.

Otimismo antropológico

São boas pessoas:

diz o termómetro

do incorrigível confiável

na sua escala de avos

que junta centímetros

à linhagem das pessoas.

São boas, as pessoas:

responde o outro,

em juramento

de psicologia positiva

mas não

de ingenuidade à prova de veneno.

Ou ainda,

no laboratório

das quase metafísicas experiências,

em pleno confisco 

do agreste, pisado chão:

são pessoas,

boas.

E foram os três 

de mão dada

sonhos fora

sonhando 

com um sonho madrigálico.

#1693

[Crónicas do vírus, CCLXIV]

 

(Por causa da mortandade num lar em Reguengos de Monsaraz)

 

Um pesado cheiro

a terceiro mundo.

10.8.20

Paradeiro do Verão

Aguardo

o rumor estival

na dobra do agosto

tépido.

 

Aguarda-me

a dança sem servidão

no estipêndio do verso

trivial.

 

Aguarda-se

o trovejar impreciso

na véspera das nuvens

veementes.

 

Aguardem

a espuma iracunda

no dealbar das marés-vivas

destemperadas.

 

Aguardo

a lente rudimentar

no pináculo de um Verão

esforçado.

 

Aguarda-me

a promessa de Outono

no fingimento do corpo

trespassado.

#1692

[Crónicas do vírus, CCLXIII]

 

Pródigos,

estes bizarros tempos,

em feiticeiros 

que adivinham o passado.

9.8.20

Fora de jogo

De todas as rochas

o soro vertido

num mar sem marés. 

 

Tinjo as lágrimas

com o doce odor 

da madrugada;

uma borboleta anuncia-se

no rogo do estanho de uma estrela.

 

De todas as rochas

cubro a boca com silêncio;

o resto 

é a maresia 

que rima com outono.

8.8.20

#1691

[Crónicas do vírus, CCLXII]

Quantas 

encomendas de passado

foram destinadas

ao futuro?

A destempo

Dizia

“quando fui para o primeiro ano”

como se o tempo 

fosse um lugar.

7.8.20

Dia de beca

Hoje é dia de beca. 

O cortejo dos notáveis

(também dão 

pelo epíteto de escol),

pátria de eruditos

a beca 

a prova do privilégio. 

Dia de beca:

o cortejo faz-se 

vagaroso

no pé ante pé sincopado

para dar tempo à casta

de notarem como são reverenciados

pelos pajens situados

nos arrabaldes. 

Da beca se diz

ser avantajada indumentária

para dar largas 

ao eu XXL

ou 

ao eu que não cabe 

em tanta prosápia.

Uns titulares da beca

provam o privilégio

pelo gongórico falar

– o gongórico falar,

distintivo dos titulares da beca.

Outros 

nem sabem dizer

(se à medula da honestidade forem)

como estadeiam a beca 

– assim se vulgarizando a beca 

na azeda melancolia 

dos gongóricos.

Hoje

é dia de beca

e o estabelecimento fechou 

para balanço.

#1690

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Por sobre as sombras

as palavras distraídas

num choro emudecido.

6.8.20

Dia de Baco

Hoje é dia de Baco.

Assim vai o imperador

já sem o anzol

que o destronou do mar

e antes que venha uma trovoada

despejar confetti 

e um pedaço de Carnaval.

Dia de Baco

deus único na galeria dos ilustres

ou mnemónica para o vinho dadaísta

em molduras estilhaçadas

o ouro a transbordar

das bocas refasteladas

do arco fecundo da vida diletante.

Hoje 

é dia de Baco

e vou à cave fazer perguntas

com a lanterna oxidada entre dentes

antes que outros demónios

ganhem a aposta. 

#1689

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

Nunca como agora

se impetrou

para que o tempo 

andasse para a frente.

5.8.20

Dia de boca

Hoje é dia de boca.

(A seguir ao dia de boda

é o dia da boca.)

A boca

da fala itinerante

que apura o palácio não mundano

e destrona o silêncio

que escraviza.

Dia da boca

que fala pelos sentidos

com as sílabas cuidadas

em palavras avulsamente 

confecionadas.

Hoje é dia de boca:

da boca-sexo

que se cola ao desejo do mundo

a língua que entroniza o corpo

a boca-sexo que abriga o sexo quente

e sabe contar com a outra boca-sexo

para um coroar olimpicamente 

extático.

Hoje

é dia de boca

e não é da boca

que faz morrer o peixe:

é da boca-úbere

onde se congemina 

o verbo não esporádico

em juras não segregadas

no sexo emoldurado

num bilhete-postal intemporal.

#1688

[Crónicas do vírus, CCLIX]

 

Entre apocalipse

e a sua mera promessa

a navegação por estima.

4.8.20

Dia de boda

Hoje é dia de boda.

Dia de boda

é quando quisermos

no festim perene

em que se ambienta

o nosso pulsar uníssono.

Pois somos nós,

no xadrez da vontade,

que dizemos ao dia

que é credor de boda.

O dia obedece.

Hoje

a boda tem dia

como teve ontem

e será o caso de amanhã.

Hoje é dia de boda

e nós temos a homenagem

que o mundo empenha.

#1687

[Crónicas do vírus, CCLVIII]

 

Não damos

saltos no tempo

por avareza do medo.

#1686

[Crónicas do vírus, CCLVII]

 

Pelo andar do mosto

este não é ano

para colheita de grande cepa.

3.8.20

Dia de bala

Hoje é dia de bala

(devo somar 

ponto de interrogação).

Dia de bala

em palco onde se movem

vultos exacerbados

que levitam na exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

E outro critério não lhe praz

se não

terçar com as mesmas armas,

como se fosse de boa linhagem

a sua exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

Dia de bala

ao sentir a pulsão

de submeter

os exacerbados de todas as extrações

à experiência que os motiva.

Ou então,

melhor seria deixá-los

exacerbados contra exacerbados

numa peleja autofágica

sacrificando-se mutuamente

num pútrido teatro

onde o sangue derramado

tingido viria com o odor fétido

dos visionários que não enjeitariam

desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.

Hoje é dia de bala.

Mas não sou eu que as trago

no coldre em mim vazio.

 

#1685

[Crónicas do vírus, CCLVI]

 

Pela maré-baixa,

um homem na faina dos mexilhões.

A fragilidade dos mexilhões

é como a fragilidade dos Homens

na maré-alta do vírus.

2.8.20

#1684

[Crónicas do vírus, CCLV]

 

Há intermitências

em que tudo parece

como dantes.

Dia de bola

Hoje é dia de bola

(Hoje é domingo).

Não fico preso 

aos versos de Césariny

(parola e Madame Blanche)

porque hoje é 2020

(não quer dizer

que a parola seja de antanho

e a Madame Blanche 

esteja em vias de extinção).

Se hoje é dia de bola

incandescem as fúrias nativas

e o arrazoado vai descer

pela rua onde campeia o chinelo. 

É dia de bola

e ao deitar

nem todos serão patriarcas

do contentamento:

uns com o azedo sabor da derrota

outros com o insosso travo do empate

outros ainda

porque nunca aprenderam 

o namoro com a vitória. 

Hoje 

a bola teve o seu dia

em véspera de os mortais regressarem

aos mastins dias da modorra.

1.8.20

Dia de bula

Hoje é dia de bula. 

A mortificação suspensa

ditada pelo azimute lúcido

das vulgatas e outros portos

no poejo militante 

açambarcado pela primavera. 

Dia de bula

nos corredores sentidos

onde peões se agigantam

e o verbo sai à rua,

democrático 

e indigente. 

#1683

[Crónicas do vírus, CCLIV]

 

Extinguiu-se

a bruxuleante luz

de agosto.

31.7.20

Dia de belo

Hoje há belo 

– ou hoje é belo,

uma das duas

ou as duas,

se possível for.

 

Do belo em matriz

parafuso da estética 

– e não venham dizer

em despeito

que desinteressa a estética

e que têm apuro

as temperanças escondidas

no ladário das almas.

 

Hoje é belo

porque há belo

e o belo

de belo o ser

Irradia-se, benévolo,

e torna belos

os seus em redor.

 

Hoje é dia de belo

e a linhagem estética

não fará grande mal

a almas entreabertas.

 

Mas se do belo houver

quem apenas se consinta em sonhos

não deixa de belo o ser

pois que sonhos há

que são a nata arrancada ao belo.

 

Hoje é dia de belo

e não quero 

que o olvido tome conta

de um dia assim

de tão belo ungido.

#1682

[Crónicas do vírus, CCLIII]

 

Um político de máscara

deixou de ser

uma metáfora.

#1681

[Crónicas do vírus, CCLII]

 

Os rostos

não chegam

a ser metade.

30.7.20

#1680

[Crónicas do vírus, CCLI]

 

E veio-se a descobrir

que a marcha-atrás

tivera o selo dos jovens.