[Crónicas do vírus, CDXXVII]
O desleixo dos súbditos
para gáudio dos regentes.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Do lado certo
a montanha desenha-se na luz.
Rasgos de crueldade
na tribuna de um rebanho
(qual será a primeira rês
a deixar de contar
no inventário dos vivos?)
Amortecem a urze sob os cascos
com o mais alto patrocínio
do cão tutelar.
A neve arrancada ao chão
dissimula-se
nos ventres opados
como se fossem vitaminas órfãs
só à espera da confirmação do algoz.
Será rubra
a neve ensarilhada
sob o jugo do punhal severo.
Será assim tingida
a abundante água
vertida pela serra.
A narrativa congemina-se:
não é crueldade
é o oximoro
da beleza serrana.
O bolo-rei
tem má fama.
As rabanadas
têm má fama.
Os sonhos e as filhoses,
também têm má fama.
As famílias
que são os seus próprios anticorpos
têm má fama.
A febre do consumo
que desmede afetos
ou prova favores
tem má fama.
O beatismo da época
tem má fama.
As juras de metamorfose
(apalavradas na ressaca da época)
têm má fama.
As árvores ornamentadas
têm má fama.
As ruas iluminadas
têm má fama.
O natal
não tem culpa nenhuma.
Havia um número
(escondido)
que tinha o rosto
da tolerância.
Mantive-o em segredo
– e não foi por gula
ou egoístico bem-perder:
queria que esse número
fosse da minha lavra
sem o avesso da linguagem cifrada
nem a pretensão desilustre
dos marçanos sem roda.
Um número,
privativo:
diamante desencontrado
na floresta de números
nem primo nem esteta
nem estulto nem primacial.
Só um número anunciado,
mas sem revelação,
espaço sem limites
dicionário à espera de apeadeiro;
sangue que se encontra
por dentro de mim.
Pagaste por todos os crimes;
e quanto pagaste?
Seriam os soldos avençados
Em privação do sol desimpedido
paga suficiente
para tão corrosivos labéus?
Em tua defesa:
a mirifica idade meandra
bálsamo para a estroinice
o lagar onde fermentava
a loucura imanente.
Foras servil
da tua própria crueldade.
Lá fora
os de memória acesa
protestavam:
nem todas as prisões chegam
para a paga de que és devedor.
Aceitaste.
De ti
ninguém saberia o som
do rogo de comiseração.
Sabias
melhor do que ninguém
que o caudal de crueldades
e o teu incorrigível orgulho interior
empatavam a súplica.
Era com o bolor
das contracapas:
o vigor dissolvido
no apogeu do a.a.
(antes do amarelecimento)
enquanto esperava
por decadência maior.
A lombada podia
disfarçar;
por dentro
embainhado o gasto
e os ossos doídos
no sarau da fadiga diuturna,
devolvia-me ao nada.
Isto das salgas
onde se desconta o tempo
devia ser um conto:
Nnarrativa meã
ou um disfarce
atirado ao rosto
da senescência,
tão cheia de audácia.
Não sejam modestos
os medíocres.
O seu lampejo
é a sindérese da poluição
o opulento arroto
que maltrata uma estrofe.
Mas que continuem,
fulgurantes,
a ser espécie protegida:
que seria dos pontos cardeais
se a antítese fosse dissolvida?
Nadamos no desterro
à altura mais rasa
do que se pode conceber.
As colheres dançam
nos filhos das cortinas
e vê-se
que do encardido que levam
as cortinas estão atrasadas
para a lavandaria.
Por vezes
do areópago mais elevado
sentencia-se:
“como é possível ter aquelas ideias?”
E eu,
que no segredo do meu íntimo
desterro tão atávicas ideias,
apetece-me
(se caísse no logro dos pesporrentes
e como eles fosse tão pesporrente)
destinar
também ao desterro
a intolerância dos intolerantes
com os intolerantes.
[Crónicas do vírus, CDIX]
Proibiram a passagem de ano:
eis os termos definitivos
da conspiração contra os boémios.
[Crónicas do vírus, CDVIII]
Proibiram a passagem de ano.
Há quem queira
estender a validade
do ano pestífero.
Seria caravela
nos confins
da desmemória.
Leve no gesto
dançando
na rima da água.
Seria caravela
fantasma insentido
à procura de paradeiro.
Ágil a terçar o vento
pressentindo
o corpo futuro.