Das pontas soltas
as asas aninhadas no ocaso
a estrofe avinagrada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O dia desmaia
em suas esmeraldas nuvens
amnistiadas pelo acobreado pressentimento
do véu crepuscular.
Deposto ao nosso olhar
o estuário testemunha
no nosso regaço.
Dizemos:
foram os nossos dedos sacrílegos
os arquitetos deste sortilégio.
Os patamares do céu arqueiam-se
nos degraus ciciados pelas palavras.
que são ouro cultivado pelas nossas bocas.
E nos corpos
levamos um pedaço de maresia
que adia o crepúsculo.
Desilusão estatística:
as estrofes rivalizam com equações
num calendário venal de legibilidade.
É como se
os números esgrimissem contra as palavras
e o eventual sangue derramado
fosse o húmus escondido sob a pele.
Mas não chega aos preparos
de uma desilusão:
nem palavras e números
esperam nada reciprocamente
nem pode haver desilusão
se para começo
nem uma ilusão fruiu.
Até ver
as palavras é que caíram
na armadilha.
Manias de aspirante a sommelier:
aprova na boca
as diferentes castas
que carregam o património da vida
como se as vidas demais
fossem aos taninos
explicar a gesta impossível.
Que veja nesta candeia
um pouco do suor tirado ao dia:
não sobrem sequer as cinzas
pois desta combustão que se inebria
sai o corpo sem cicatrizes.
Fabrica-se a hora gentil
terrível preparo dos cães de atalaia
em vez de vertigem no auge da noite.
Se soubessem
de cor
as varandas que aformoseiam o lugar
não se prestavam à poesia ilustrada,
não se destruíam em voos rasantes
sobre a temível,
e, contudo, tentadora,
decadência.
Os cigarros nunca fumados
servem de testemunha:
não se diga que não são credíveis
porque ainda estão intactos.
A solidão
é um osso indigente
um gládio metido à força
no olhar sem caução
o altivo convencimento
dos estetas de si mesmo;
dizem:
uma farsa por dentro
da doutrina do homem gregário
flor sedutora, mas afinal avidamente carnívora
o osso que não fratura
quando a fratura seria condição
da solidão enfim derrotada.
Pois nem o maior dos misantropos
concede
que a solidão seja solução.
Não sei
quando é a posteridade
a não ser que ajuíza
a amputação de todos os pretéritos
deixados vagos
na decadência própria do que se resume
a um rastilho.
Não se coíba
a maresia desarmadilhada
as feiras onde se amesquinham os eruditos
as obras ainda por fazer
os movimentos que não são perpétuos
a finitude dos corpos.
Se ao menos
se pudesse atear
o acentuado arrefecimento diurno.
[Em dia de mais de 40º em quase todos os lugares]
A voz da madrugada
objeta o sonho derruído.
Não há matéria válida
jogada no avesso da vontade
e as cicatrizes da mudez
não passam de pele tatuada.
Não se diga da penumbra
o que se diz de vultos desassisados:
em cima do desenho pueril
sobressai o pesadelo itinerante,
a voz tumultuosa que agrava o medo
um porventura deslaçado murmúrio,
tardio.
A voz da madrugada
ainda silenciosa
pressente a tortura consecutiva.
Daí o silêncio estrutural.
You were the burglar
I was the warrior.
You were the criminal
I was the hero.
You hollowed out freedom
I was to arrange all wills.
You shall not harbour History
I will fence peace.
Tabuleiro arcano
lábios de sangue
Mata-Hari imortal
em disfarces insuspeitos
atalaia
por dentro das costuras alheias.
A diplomacia não fala esse idioma.
Para que existe
a diplomacia
se aos furúnculos espiões
se admite
na penumbra de uma caverna
o proibido
na cordata contratação
dos gentios?
A guerra da sabedoria
limpa do mapa a artilharia soez
e dos homens guerreiros
sobra a lisura da tinta-da-china.
Andasse o néctar de boca em boca
em genesíaca partilha dos pares
fosse a bondade mais do que vão conceito
e de bandeira em bandeira
os aviltantes arremedos de insídia
ficavam por conta dos apátridas:
os legítimos herdeiros
dos autênticos crimes
contra a humanidade.
O desfalque imediato
pelo cordel desatado das bocas corroídas.
No papel
amontoam-se as vírgulas a destempo
e os rapazes desinstruídos
mostram a avareza da ignorância,
o seu lugar alegremente puído
pela indiferença ao que lhes é exterior
às artes e cultura e até à História.
Não se pense que é vício por defeito:
figurões bem postos
garbosos da sua linhagem
e dos adquiridos direitos quase aristocráticos
mendigam a indigência disfarçada
– como se fosse uma forma de ignorância soft.
Encantados
admiramos a sua existência.
Ser testemunha desabonatória destes figurões
é prazer que não se transaciona.