18.8.22

Injustiças indocumentadas (7)

No arco da velha

o mal é do arco

ou da velha?

#2495

A matilha

não obediente

suprime as normativas:

são os seus próprios anarquistas

e vítimas prediletas.

"The Beachland Ballroom"

A carne não sangra;

canta 

com os dentes entumecidos

e a gola da alma de atalaia.

O corpo que vocifera

rima com o idioma rouco

e é como se todos,

em uníssono,

pudéssemos morrer à nossa vontade.

 

[Idles, Vodafone Paredes de Coura, 17-18 de agosto de 2022]

17.8.22

#2494

Com a vossa licença,

que a manhã se faz tarde

e os provérbios estão à míngua:

deito o olhar ao rio

a ver se me devolve o sangue.

16.8.22

#2493

Não são 

amestrados 

os sonhos à lareira, 

a direção assistida da vida.

15.8.22

Complemento direto

Se fossemos salteadores

e sonhássemos com montanhas

em vez de bandeiras

faríamos de poemas avulsos

o hino com mastro a propósito.

#2492

Só tem honra de notícia

a deriva para o precipício

(não o desaquartelar de cárceres).

14.8.22

Injustiças indocumentadas (6)

O teatro de guerra

não é um teatro

que se veja.

#2491

Não se cultiva,

a letargia.

 

(Ao contrário

do marialvismo.)

13.8.22

Dolo

O que faço

deste dolo

provérbio gasto

ou apenas

intenção cimentada no mural

cisão entre o eu e o acaso?

 

O que faço

com este dolo

matéria sem linhagem

costuras acima da medida

a manga gasta no pelourinho

sem sentenças por perto

sem regras a servirem de gramática?

 

O que faço

metido 

neste dolo?

Injustiças indocumentadas (5)

Dar com os pés,

como quem couceia.

#2490

O mar

que abre as janelas 

da alma

e a alma que respira

o mar.

12.8.22

Injustiças indocumentadas (4)

A fava

deve ter as costas largas

ou é o embaixador vegetal

do patinho feio.

#2489

A manhã macia

nos despojos

da lua poente.

11.8.22

Injustiças indocumentadas (3)

Às vezes

somos centopeias

mas só fugimos

a sete pés.

Sétima via

Se estes marços não acabam pela tarde

protesto a delação dos espíritos amordaçados

contra a especiosa safra dos clarividentes.

 

Ondas musculadas não amedrontam as rochas

nem sob ameaça pendida sobre a jugular

pois o material previdente assenta em carvão.

 

Atirem os detonadores ao Outono circunstancial

e depois adormeçam numa cama versátil

que das miragens habituais já não há paradeiro.

#2488

À força de tantas certezas

ficaram órfãs 

as perguntas.

10.8.22

Injustiças indocumentadas (2)

Chamavam-lhe

um figo.

 

E quem estabeleceu

que o figo

precede os outros 

na hierarquia dos frutos?

Sobre vendas nos olhos e Salazares em levitação constante

Ninguém vê

a venda sobre os olhos

e não é por acaso

pois a venda veda o olhar

impedido de ver 

o que está impedido de ver.

A tautologia do avesso

não contraria

a litania dos maus espíritos.

Eles confessam a fraqueza

enquanto esmiolam o raciocínio

reduzido 

a um quinhão de pouco mais que nada.

A venda aplicada sobre os olhos,

o ultraje máximo

a depreciação dos espíritos que

(dir-se-ia)

se fomentam livres:

a venda sobre os olhos

é voluntária,

por inação de quem desiste de o ser

ou por cedência aos mastins

incomodados se os espíritos livres

prosperarem.

Confirmado está

que o sangue salazarento 

não ficou sepultado 

quando os cravos deram patrocínio 

à liberdade.

#2487

Da vulnerabilidade

não desçamos 

ao inferno.

9.8.22

Injustiças indocumentadas (1)

Todos lamentam

a pedra no sapato

mas ninguém protesta

contra o sapato na pedra.

Poesia vs. ciência

Uma fatia da lua:

a chave urdida na sementeira

no bolbo da Primavera

e os tribunos extáticos

atribuem aos deuses as causas órfãs.

Uma fatia da lua servida no oráculo:

os destemidos marinheiros trazem os mares

eles que passaram por tantas marés

e que ciciam o sono perdido

antes que fossem serventia à mesa

de criaturas acusadas de naufrágio.

 

O que seria dos mapas

sem os marinheiros intrépidos

ou os exegetas que nos leram

a História?

 

Na pena iconoclasta dos letrados

as talhadas de lua são como aneurismas

pestes que vestem as páginas dos vates

contra os determinismos selados

em matéria irremediável.

As luas de antanho

testemunharam o ocorrido

mas ninguém lhes pergunta

pelo determinismo dos peritos.

#2486

Os dentes macios da estufa

fintam a geografia limítrofe.

8.8.22

Poema à Adélia Lopes

Hoje

(já)

li

dois livros

e qualquer coisa

de poesia.

Peregrinação

Todas as tardes são pusilânimes

quando os aromas se escondem

nos verbos covardes

nos rostos seráficos que, 

étimos de fingimento,

corroem a mais ínfima corrosão

deixando um telúrico vazio por dentro

no raiar do dia assim desapetecido.

 

Não é o vulgar irradiar do sol

que disfarça as intempéries interiores:

o basalto cobre a pele

e as mãos 

tornam-se esquimós com medo do Verão.

 

Se ao menos 

a tirania saísse do dicionário

talvez houvesse um arranjo 

para as entorses do mundo.

#2485

Bulem comigo

em (quase) igual medida

bulas papais

e bulas medicamentosas. 

7.8.22

#2484

As mãos atravessadas

numa floresta de frases

desmatando a mudez da fala.

Verosimilhança

Os olhos a carvão

arrastam a vírgula

na página emaciada.

 

Contam as sílabas

no úbere do tempo

a tempo de não serem tardios.

 

As clepsidras conspiram

braços a desmedo no nadar

o suor lavado no mar.

 

As tardes porfiam

um cessar repetitivo

em versos sentados no luar.

 

As comendas não se revindicam

lugares vazios no idioma

se os silêncios disserem mais.

 

Nada dizemos aos anátemas

às ermas marés

no regozijo dos motes entronizados.

 

No distante lugar

onde nada se faz dicionário

os rostos contam tudo o que é preciso.

6.8.22

Desconsentimento

O logos periférico

larápio da santidade,

todavia visceral,

do sangue bolçado

contra 

os anátemas de tanta linhagem. 

Logo se confessa o esconjurado

em degraus estilhaçados

por manifesta indisposição ao arnês

no fundo

a liberdade sem código de conduta.

Os almanaques passeiam nas mãos serenas

e deixam lacradas sentenças;

as mesmas que habilitam dissidências

na pureza do pensamento sem freios.

Dessas harpas subliminares

levantam-se ecos que desenham as estrofes

em vez dos códigos de conduta:

pois deles só tem carestia

os que à partida sabem

não serem credores de confiança. 

#2483

No estirador sem esconderijos

somos a pele que se mostra

a franqueza possível 

de um nome sem rasuras.