Oxalá sejam astutas
as mãos que mineram
os pesares.
Não são as constelações
que nos dão de comer
nem se diga o mesmo
das inválidas especulações
que não passam de especulações.
É por um rio sinuoso
que se mete o caminho afora:
não nos intimidamos
com o caudal que apressado segue
como se a foz fugisse
açambarcada pelo rio maior
açambarcada pelo ontem que não se repete.
Os desfiladeiros
fazem lembrar os sobressaltos
a matéria que dá congruência a tudo
– a totalidade só se preenche
ao ser levitada pela incongruência.
Não é a intimidação que nos trava.
O rio demora-se
e o dó que o dia tem apressa-se
em extinção.
Não queremos
que a noite seja.
Não queremos
que sejam as sombras a tornar-se gramática
e que as árvores sejam meros vultos
atiradas contra as margens que se estreitam
à medida do medo que se alimenta
nas veias transparentes.
Ou então
procuramos exílio na noite
o necessário e temporário exílio
para não sermos vítimas da noite
que se não vê.
Escrevemos na lembrança do sono:
a manhã
há de trazer a foz do rio
mais cedo do que tarde.
Prosseguimos no sonho:
as folhas molhadas caem sobre a pele
derruídas pelo vento que dança com a noite.
A pele diz o sossego que o sono convoca
na indiferença pelo ciciar do vento
arrumando o medo para uma nesga da memória.
Continuamos a sonhar:
os modos contrafeitos nos usos sociais
os fingimentos que aplanam as montanhas
o cárcere interior que adultera a vontade
a miragem que enfeita o entardecer
o torpor que não rima com indolência
a noite consecutiva
apenas uma das muitas vésperas
que se costuram no amontoado do tempo.
E já não sabemos
distinguir o sono do sonho e do resto
como se a ordem da consciência
tivesse sido raptada pela fragilidade.
Irrompemos
com os primeiros sinais de claridade.
O rio ausentou-se.
A floresta foi deposta.
O dia nasceu sem o castigo das nuvens.
O vento calou-se
cansado da boémia da noite.
E nós
continuamos a demanda
uma foz qualquer
que seja o começo de outra partida.