15.8.23

#2877

No emaranhado 

que foste buscar ao passado

precisas de uma didascália,

uma memória futura

para te perderes.

Injustiças indocumentadas (152)

O lugar

onde se tomava

Eros por erros.

 

[Meta-castrações]

14.8.23

Lágrimas

Disse 

às lágrimas

para serem caudal próprio.

Elas 

a medo

(que a galhardia dos costumes

ainda está trespassada 

pelos marialvas preceitos)

precipitaram 

com modéstia. 

Alguém

talvez perito em prantos

encorajou as lágrimas

deu-lhes o mapa

para se fazerem

aos rostos macios. 

Nunca mais 

houve fugitivos às almas 

que torpedeiam

a mentira

enquanto ela se habitua

a ser mentora 

da mentira a si própria.

#2876

Como amoras que adoçam a boca

o dia fugitivo a suar a opulência.

13.8.23

#2875

O entontecido caudal do dia

avança contra a dilação do medo

no irreparável viver sob custódia.

12.8.23

#2874

O murmúrio contínuo

o fulgurante desmatar das vozes

a venda colada aos censores.

11.8.23

O naufrágio da arca de Noé

Sabes de cor as horas

e eu ainda sondo os relógios.

A matéria sufragada

deixou de contar

e são os idiomas forasteiros

os que arrematam a inteligência.

 

(Já alguém disse

que falar alemão

ajuda a ser filósofo.)

 

A amálgama de falas

não cobre o entendimento das gentes:

por mais que um grupo sanguíneo

fale o mesmo idioma 

 

(biológico)

 

os Homens insistem em apartar

como se as fronteiras fizessem

Homens diferentes.

Injustiças indocumentadas (151)

Arroz malandrinho

não é da conveniência

do clero. 

#2873

O sangue desbotado

crepita na abóbada dos reis,

a tatuagem indiscreta

à porta parada.

10.8.23

Manual da improcedência

Este é o casino solene

a quimera que ateia os déspotas

entre eles e a providência

uns gramas de indigência

que pesam as toneladas do desabamento.

Por força de decreto

as avulsas ordenanças caem sobre o palco

vítimas todos nós

reféns de uma anestesia

(que devia estar destinada à improcedência)

a vulgata enformada em traje protocolar.

Injustiças indocumentadas (150)

Os créditos em mãos alheias

pois então,

a generosidade não é crime. 

#2872

Desacontecimentos, 

as efemérides inverosímeis 

milagres para crente acreditar.

9.8.23

Quase claridade

Ólafur Arnalds, “Near Light” (Living Room Songs), in https://www.youtube.com/watch?v=UHVh_L_kv1Q


Deito-me na lava que deixei à minha frente

os corsários que avulsos intimidam o sono

trovejam as pedras atiradas sobre as abóbadas

e de mim não sei se não a constelação inaugural

uma boca extintor servida nos melhores banquetes

braços e pernas presidentes

pendidas como tentáculos

generosamente

o melhor do pior

antítese.

 

Confiro a métrica dos medos deixada em rodapé

convoco a audácia dos demónios

entre marés providenciais e páginas esquecidas

desdobrando as fotografias sonolentas

o lume da manhã arrefecendo a carne acordada

o sufoco das tempestades sem bainha

desde o miradouro hasteado

até ao aqueduto dos cruzados.

 

Dou-me inteiro à tua posse

e tu

a sereia que arranca os versos

à minha boca prodigiosa

contemplas a rebeldia dos insubmissos

como sabes de cor cada centímetro de pele

e eu

sem pressa do passado

arremato dos leilões sem paradeiro

a argamassa onde tudo se ampara

onde tudo se compõe 

na efémera câmara transparente

no friso puído que soletra de cor

o magma inquieto

que não tarda

é musicado em lava incandescente.

 

Para dizermos então

que os dicionários correm no sangue

e toda a literatura se escondeu

nos poros da pele que irradia o luar cessante

em furnas vertiginosas fugindo do crepúsculo

caiadas nos braços centrípetos da árvore-favor.

 

Deixo a lava onde me sentei futuramente

o sumo da lima vertido na pele cicatrizada

e sei que da lava que lavou a alma 

agora acrisolada

agora

nesse preparo que é um tempo dedicado

morada em que à tua, maior, alma

se ofereceu.

Injustiças indocumentadas (149)

Mau, Maria.

O paramento

de um erro gramatical.

#2871

Trago as galáxias na boca

tanta era a sede

e o medo 

de perder o paradeiro do dia.

Injustiças indocumentadas (148)

Mordeu a língua 

– e não foi por fome.

8.8.23

Injustiças indocumentadas (147)

Falta ainda determinar

com que peso

o animo deixa de ser leve.

#2870

Sob o peso da aurora

o juízo deposto na maré-baixa 

de um sonho rebelde.

7.8.23

Conclave (epifania coletiva)

Pirómano dos sentidos

denunciou o equinócio das almas

alegremente vãs

em procissões

também elas vãs

no fingimento do seu fingimento absoluto.

Oxalá fosse cimento

sussurravam as almas contra o pecado

enquanto ao céu descia

em apoplexia cortante

um Ícaro mendaz

a súmula do alarido montado

em campo térreo

e abonado de unções presunçosas.

Do estado de negação

ninguém teceu observações alusivas.

É da espécie

a especialidade de varrer o lixo

para debaixo do tapete

e fingir,

assobiando lérias,

que podiam não ser como os avestruzes.

#2869

Os dentes à mostra

o passaporte não escondido

que ecoa a trégua como sangue.

6.8.23

#2868

Janelas

muitas e escancaradas

precisas são

para da letargia 

não sermos moradores.

5.8.23

#2867

A cidade

navega nas veias,

encontra-se forasteira.

4.8.23

Perdão dos náufragos

O fogo desce ao céu

esfria a pele urdida nas fontes invernais

conspira 

a distração contracenada

com os espíritos benignos que ascendem,

vultos de si mesmos,

no improvável hastear de poemas incendiados. 

 

Combinam-se os rios modestos

com a intercessão da chuva antecipada

ao inverno: 

as águas sobem ao céu 

encomendadas ao ímpar murmúrio noturno:

não se esperem selas adestradas

nem vozes domesticadas;

espere-se um vulcão desamordaçado

infrene na insubmissão

colheita abastada do investimento pressentido

nas silhuetas vagas que se desenham

nas nuvens à margem.

 

O fogo retorna à nascente,

erupção virada do avesso. 

Do perdão 

não há xisto que o emoldure.

Injustiças indocumentadas (146)

O terço 

que se ora 

– fica 

apenas 

pela terça parte.

#2866

Trespasso a noite boreal,

o ânimo sufragado no miradouro

fatura à pele os juros da avidez.

3.8.23

O homem que apanhava furacões

Era pelas ideias tresmalhadas.

Não esperassem elegância

vinho sumptuoso

mineração da angústia

votos pírricos

ou ideias lajeadas a purpurina

nem um módico de petróleo

 

só para amostra.

 

Era pelos ventos arcanos

aqueles que murmuram o halo vindouro

e muito embora acreditasse em anjos

(anjinhos, para melhor se expressar)

não seria vítima dos algozes avulsos:

ele era só

 

o homem que apanhava furacões.

#2865

O turismo

não tem

férias.

 

[Servidão]

2.8.23

Morgados

O corsário desmatado cobra os juros por junto

e o rosto remoça no orvalho ditoso

que aveluda a pele massacrada. 

Os dedos agarram-se ao vento mendaz

não se importam que seja mendaz

desenham a geometria das curvas

como se de retas fosse a estrada. 

Os impossíveis confundem-se com farsas

o fardamento circunstancial do dia vetusto

como se fossem andrajos condecorados 

e as assíduas personagens puídas 

em pose agonicamente importante

insultando o momento 

com pose de superioridade

(ah! os procuradores da república). 

Levanta-se a ira fermentada na lente baça

o areal enfastiado pelas marés rotineiras

o tempo, que parece imóvel,

uma sucessão de pesadelos hauridos

os roteiros excretados por figuras boçais

que lavram a sala pútrida com falas malsãs

e nós, intencionalmente indiferentes,

medramos por dentro do luar poético

uma biblioteca quimérica que cabe na alma

enquanto esperamos

que o sangue 

destile os morgados que se insinuam

no espelho do futuro.

#2864

O poema a não:

o poema anão.

1.8.23

Desenfado

Em apneia

a ler de olhos fechados

os ramos das árvores

como pauta literal

e as juras,

ah! as juras, 

a caminho de serem desenfado

 

(sendo o desenfado

o desmame 

de um fado).