O algodão é doce
e isso não é uma doce ilusão
que aprisiona a infância.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não somos as sombras onde se escondem os escombros. Somos a lucidez, a manhã clara sem medo da chuva, a lava de onde procedem as quimeras. Somos a estatura inteira que mede o aniversário do futuro. Não somos destroços numa mordaça a vontade. Somos a maré alta de onde temos atalaia no sangue indomável. A desinquietação com dedos mágicos por cima, uma feitoria sem embaixadores de medo, nós, o peito pleno em vez de bandeiras, o hino desconhecido dos outros, nós.
É desta extorsão de mim
que arrebato
o crepúsculo haurido.
As mãos suadas extraem da terra
os sorrisos propedêuticos
as limalhas atiradas ao acaso
contra os olhos ilhéus
dos operários.
O que dizer
destes dias circenses
em que muitos se disfarçam deles próprios
fingindo
que se orquestram na finitude sem regaço?
Ah!
o estipêndio joga-se em tabuleiros luxuosos
e são mãos sem rosto
que esfregam dedos extasiados
e esperam
com a ilusão dos desenganados
que seja sua a sorte vez
eles que nem sabem
do princípio geral da corrupção.
Os bichos remoem-se
indiferentes
numa gesta improvável
no cesto onde se guardam as frutas
no berço onde gastas se aprendem palavras
contra o fundo poço onde se escondem silêncios.
A combustão sobe a palco
altiva
pergunta quem quer um tumulto de graça
não sem desaprender a graça avinagrada
o sempre distante braço de ferro
que se indispõe
contra abastados fornecedores de esperanças.
Prossigo a pauta dos dias
eu que continuo a não saber ler música
e persigo vultos que seguem de rastos
como se lambessem a lama
e depois a bolçassem sobre os distraídos.
Prossigo
que as demandas se consultam na escuridão
intérpretes da alergia à simpatia gasta
antes preferindo cozinhar as sumptuosas farsas
sozinho no epicentro da periferia
roendo as unhas vestidas de cal
dizendo em apenas murmúrios
um dó-ré-mi apalavrado
no sofá dos aristocratas.
E se em sonhos me dissolvi
foi porque me esqueci de dormir
escondido na vela hirsuta de um velho veleiro
em mares de nomes que não sei
empunhando o sabre apodrecido
como convém
a um apátrida de guerras
magnificamente condoído na estatura meã
de tudo à volta.
O nefelibata apeado
antes de trair a fronteira
juntou as mãos às travessuras dinásticas
como se não esperasse absolvição
e aos lençóis freáticos
roubasse as lágrimas que não tinha.
Não se importava de ser pária
não se incomodassem com os andrajos
a colossal farsa que encenava
acenando às lívidas mães pela ausência dos filhos.
Ele sabia dos gatos avulsos
sabia
que eram sentinelas à espera da noite
e que ninguém os acusava
de serem reféns do medo
Eles é que sabiam
montados no rosnar altivo
príncipes autoritários que esventram as presas.
Na véspera da manhã
diletante
assobia ao silêncio
no apartado longínquo da solidão
fugindo da sua cólera
antes do testamento dos anciãos ser lei
antes que seja cedo para ser tarde.
Se ser
é viver dentro de uma fotografia
reclamem-se créditos para o flash
sem obedecer a conspirações
nem recuar aos suores frios
talvez
beijar os dedos do precipício
pode ser que do outro lado
verticalmente caídos
encontrem a madeira para a moldura.
E só então
fotografias de pleno direito serão
com direito a moldura
e tudo.
Fugi aos olhos do mundo
por detestar
que os olhos do mundo
estivessem de atalaia
e eu
da mais profunda solidão
dispensasse essa companhia.
Esperei pela visibilidade da manhã
para depor a meu favor
e não quis saber que apeado seria
se fosse esse meu gesto.
Li os editais admiráveis
os que entronizam os reis de nada;
subi
sem tibieza
ao tribunal inferior
sem medo dos medos entoados
só com um garfo metido entre as ideias
desarrumando o futuro imperfeito
numa opereta eloquente.
Os arbustos diziam o caminho
sobre as pedras sucumbidas
contra os rostos silhuetas tomados ao acaso
esse, o imaterial bocejo
intemporal
a senha apalavrada dos segredos quitados.
Não digam
contra as probabilidades
que amanhã é Inverno
não conspirem
contra os obstetras que parturiam o mundo:
não lhes digam
que deram existência a um nado-morto
e que todos
os que por aqui diligenciamos tempo
fingimos o embaraço de tanto ardil.
Sem esta força arremessada contra os algozes
não somos nada
não temos nada
e enfim desaparafusados do siso
assisamos outras comendas
assinantes de uma tença desconhecida
o congeminado sol por batizar.
O sol
a que ninguém
verte o sal das feridas que esconde
o sol mátrio que afirma a gramática
e habita o fundo métrico
das orquídeas em devir.
Um dia
a fauna tornou-se rebelião
e só os vegetarianos tiveram salvos-condutos.
A ovação repartida
disse
que fauna e vegetarianos eram uma coligação
e os últimos só eram solidários
com a fauna.
Ninguém podia falar de genocídio.
Ninguém subiu alto no mastro do protesto
porque já só havia
os aliados da fauna
e esses falavam em uníssono.
Mas depois acordei
e intuí tratar-se de um pesadelo.
Afinal
fora uma noite
(e não um dia).
Desaparece a custódia dos vultos
a leveza de uma nuvem
dissolveu-a.
O cimento fraco foi cercado
uma viuvez intensa fareja a farsa
prepara-se para anunciar
que é fraco
o cimento.
E as pessoas
tão temerárias
tremem como se estivesse frio
bebem o suor do avesso
como se fosse um antídoto
não sabem de quê.
Se este pudesse ser um retiro
seríamos procuradores de uma moldura;
mas é uma miragem
à espera de ser fruto maduro
ou à espera
de depressa se tornar bolorento
em forma de colheita tardia.
Não há nada de útil
num tira-teimas.
Antes um tira-nódoas
que devolve uma alvura
apenas farsante.
À noite que se adia.
À pele quente que se entrega nos braços.
Ao olhar inquieto.
Às estrofes que se congeminam no silêncio.
Ao mar que se agita no avesso da memória.
À lava que se ajuramenta no beijo da memória futura.
Aos corpos entretecidos na coreografia sem nome.
À manhã, que levita entre os olhares sem medo.
A História
é um impressionismo fatal
o resgate para memória futura
do dever geral de desumanização.
Há personagens
que parecem paridas
de dentro de matrioskas.
Uma eructa
desmultiplica-se em dois
desdobra-se em quarto
em oito, em dezasseis;
até estarmos
cercados.
Um pesadelo é fruta viva
ao pé da matrioska parideira.
O atraso civilizacional
é que ninguém descobriu a cura
das matrioskas que não param de parir.
Abaixo as matrioskas
ocas.