6.2.24

#3052

Dias estes

aziagos

das pessoas

que medem quilómetros.

5.2.24

Gramática

Ontem 

esqueci-me das vírgulas

disfarçado de sicário 

remexi na gramática,

despojada de aritmética 

e de espelhos.

Hoje

deixei de saber o critério:

uma espada veio a direito

e fugi

a tempo (a tempo)

antes que fosse estilhaçado

na desbondade da gramática

ferida.

#3051

De dia em dia

a tontura dos apressados 

dos que oxalá

soubessem adiar.

4.2.24

Injustiças indocumentadas (289)

Está em falta

a genealogia

das más famílias.

#3050

Não fôssemos lobo

em vez de gente

matávamos fome

em vez de gente. 

3.2.24

O adeus de deus

Hoje

destoei da maré vincenda

e fiz-me náufrago

de águas amanhecidas. 

Inventei verbos de outro modo

impossíveis

arranquei preconceitos pelas raízes

provoquei vulcões adormecidos

virei obras de arte do avesso

fiz-me

interrogações que andavam embaciadas. 

 

Se fosse pelos dias passados

não havia futuro

não tinham prescritos os compêndios arcaicos

terçando entre as ondas ateadas pelo medo

como se fossem apenas pueris os heróis

gestas de outrora

descaminhadas. 

 

Os maninhos queriam brotar das mãos

mas a lucidez lancinante cuspia um travão

e as rugas que amedrontavam o futuro

entravam no diadema da alma

elas tão dóceis

tão imperturbáveis

mapa irrisório que seria atlas pressentido. 

Os olhos não tinham capas

não se escondiam das vetustas sombras

das sombras que hipotecavam o sangue errático;

se houvesse epitáfios revelados a destempo

se o testamento que se desampara do tempo

não exigisse a gramática impossível

daria das paredes os fungos improváveis

a aquiescência indolor aos degraus sem aviso:

então seria uma olimpíada altiva 

o verso duplo frequentado em tertúlias

a glosa do indizível

a manhã enfim clara

o sono temperado, esgrimindo contra a insónia,

o diário ornamento a ferver sorrisos escaninhos

e as mãos fundamente nas águas mansas

dissolvendo daninhos furtos dos féretros afins

a calma inteira devolvida ao mar manso

a contemplação de tudo no palco sem pregas

apenas

o eu indissolúvel

procurador da indiferença geral

os olhos desvendados à procura da lava

o corpo inteiro

pronto

a ser manhã, outra vez. 

#3049

Vi-o passar:

era a sua própria procissão

um rosto escandido

na miséria da angústia. 

2.2.24

Eis a desumanização no seu desesplendor

O beijo sequestrado

o desejo adiado

o sexo descombinado

o instinto esbulhado. 

 

Somos a farsa em bardo

nosso o inumano lodo

no santuário da carne não provado

deixamos o de nós robot estacionado. 

 

Se este é o porvir desenhado

de nós dirá o corpo anestesiado

e o tempo vindouro esventrado

pelo espírito abrutalhado. 

 

Este passa a ser o corpo calado

com medo de ser domado

ele do avesso virado

verbo de um destino adulterado. 

Injustiças indocumentadas (288)

O hino do conservador

é dizer

a toda a hora

não desfazendo.

Injustiças indocumentadas (287)

Contas

as contas

incertas.

Contas

com as contas

sem paradeiro.

#3048

Cenas eventualmente chocantes;

depende 

do compasso moral

do observador.

1.2.24

Lelé da cuca (PR dixit antes de ser PR)

Vai o vau

de lés a lés

não tem medo

do revés

conspira através

e antes que desça 

o pau

e seja medido como

o mau

rasa, mesmo resvés

na forquilha o viés

a jeito

do educativo tautau.

#3047

A mão meiga

desfaz as vírgulas

(a destempo)

limpa as rugas

da prisão do futuro.

31.1.24

Injustiças indocumentadas (286)

Passas

paninhos quentes

mas

está tanto calor.

Injustiças indocumentadas (285)

O fazer mau contacto

é por não ter 

bons contactos.

#3046

O tempo (pode ser) livre

a roda (quer ser) livre

o regime (devia ser) livre 

e livre (antes fosse) direto.

30.1.24

Despertador

As coisas que se dizem:

a maldita boca destravada

vai mais depressa que o pensamento

azedando palavras

abrindo feridas 

à prova de cicatriz. 

 

Os mastins 

seguram a decência com a boca

mordem-na nos lábios

apetece-lhes falar do avesso

como se condenassem os costumes 

ao silêncio

e depressa os centuriões dos costumes

deitam-nos em acareação fundamentada

com os déspotas que bebem conspirações

azulando o caos com um raiar amanhecedor

o pior dos embargos:

 

ainda 

há muito dia 

a caminhar

e ele 

já nasceu 

torto.

Injustiças indocumentadas (284)

Corta e cose. 

Cose. 

C-o-r-t-a.

#3045

Andavam em cardume

a vontade rapinada 

o vértice de um nada.

29.1.24

A saque

O saque 

em talhadas

tutelou as ossadas

em descuidado material

não havia crime a preceito

e os soezes agitavam a alva bandeira

os farsantes, bolçando bílis,

chamando o alvará filial

dos que mercavam

de empreitada

o saque.

#3044

Devorou

os lanços da escada

sempre gostou

de carrosséis 

e túneis da morte.

Injustiças indocumentadas (283)

Tem as costas quentes

apesar de ser 

Inverno.

28.1.24

#3043

As cordas 

ficaram lassas 

deixaram espaço

para a vontade.

27.1.24

#3042

O mundo acaba de acordar.

Eu acordei mais cedo.

26.1.24

Injustiças indocumentadas (282)

Uma pedra no caminho

acreditem

é pior 

do que uma pedra no sapato.

#3041

Cai no céu infecundo

a base estrutural da angústia

e os dias por diante

já não estão à espera do medo.

25.1.24

O apocalipse que nunca mais chega

Confirma-se

a tese do apocalipse,

se for lida pela lente dos proponentes:

a teimosia do mundo em não se finar

é o apocalipse em cena

para os que dedicaram uma vida

a vender o apocalipse 

para a brevidade impossível.

Confirma-se:

o mundo a conspirar

contra os estetas do apocalipse:

o apocalipse

da tese do apocalipse.

#3040

O homem não,

chora.

24.1.24

Conspiração

A bengala puída limpa a erosão do tempo.

conspira contra o futuro à margem do adro.

Se ao menos as rugas hibernassem

se o corpo não fosse um arcaísmo prometido

se a matéria do tempo não fosse volúvel

podia-se estancar a desesperança

que grita desde mares longínquos

audível,

terrivelmente audível,

enquanto a procissão dos vultos

se encaminha para o pântano sem nome.

Se ao menos o fingimento fosse boa moeda

e os tumultos que ateiam o sangue adormecessem

podia ser 

que o tempo não fosse o nome do medo.

#3039

Um chelique,

quase!

a dama num achaque

a porcelana estilhaçada 

– um resumo 

das maneiras desfermentadas.