Hoje
destoei da maré vincenda
e fiz-me náufrago
de águas amanhecidas.
Inventei verbos de outro modo
impossíveis
arranquei preconceitos pelas raízes
provoquei vulcões adormecidos
virei obras de arte do avesso
fiz-me
interrogações que andavam embaciadas.
Se fosse pelos dias passados
não havia futuro
não tinham prescritos os compêndios arcaicos
terçando entre as ondas ateadas pelo medo
como se fossem apenas pueris os heróis
gestas de outrora
descaminhadas.
Os maninhos queriam brotar das mãos
mas a lucidez lancinante cuspia um travão
e as rugas que amedrontavam o futuro
entravam no diadema da alma
elas tão dóceis
tão imperturbáveis
mapa irrisório que seria atlas pressentido.
Os olhos não tinham capas
não se escondiam das vetustas sombras
das sombras que hipotecavam o sangue errático;
se houvesse epitáfios revelados a destempo
se o testamento que se desampara do tempo
não exigisse a gramática impossível
daria das paredes os fungos improváveis
a aquiescência indolor aos degraus sem aviso:
então seria uma olimpíada altiva
o verso duplo frequentado em tertúlias
a glosa do indizível
a manhã enfim clara
o sono temperado, esgrimindo contra a insónia,
o diário ornamento a ferver sorrisos escaninhos
e as mãos fundamente nas águas mansas
dissolvendo daninhos furtos dos féretros afins
a calma inteira devolvida ao mar manso
a contemplação de tudo no palco sem pregas
apenas
o eu indissolúvel
procurador da indiferença geral
os olhos desvendados à procura da lava
o corpo inteiro
pronto
a ser manhã, outra vez.
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