3.2.24

O adeus de deus

Hoje

destoei da maré vincenda

e fiz-me náufrago

de águas amanhecidas. 

Inventei verbos de outro modo

impossíveis

arranquei preconceitos pelas raízes

provoquei vulcões adormecidos

virei obras de arte do avesso

fiz-me

interrogações que andavam embaciadas. 

 

Se fosse pelos dias passados

não havia futuro

não tinham prescritos os compêndios arcaicos

terçando entre as ondas ateadas pelo medo

como se fossem apenas pueris os heróis

gestas de outrora

descaminhadas. 

 

Os maninhos queriam brotar das mãos

mas a lucidez lancinante cuspia um travão

e as rugas que amedrontavam o futuro

entravam no diadema da alma

elas tão dóceis

tão imperturbáveis

mapa irrisório que seria atlas pressentido. 

Os olhos não tinham capas

não se escondiam das vetustas sombras

das sombras que hipotecavam o sangue errático;

se houvesse epitáfios revelados a destempo

se o testamento que se desampara do tempo

não exigisse a gramática impossível

daria das paredes os fungos improváveis

a aquiescência indolor aos degraus sem aviso:

então seria uma olimpíada altiva 

o verso duplo frequentado em tertúlias

a glosa do indizível

a manhã enfim clara

o sono temperado, esgrimindo contra a insónia,

o diário ornamento a ferver sorrisos escaninhos

e as mãos fundamente nas águas mansas

dissolvendo daninhos furtos dos féretros afins

a calma inteira devolvida ao mar manso

a contemplação de tudo no palco sem pregas

apenas

o eu indissolúvel

procurador da indiferença geral

os olhos desvendados à procura da lava

o corpo inteiro

pronto

a ser manhã, outra vez. 

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