6.4.24

Setentear

Setentear

como se pedissem à pele

um ocaso

o sexo embriagado

em memórias de nevoeiro.

#3114

A candeia amestrada

bruxuleia, hesitante:

faz-se ao caminho incógnito.

5.4.24

Injustiças indocumentadas (326)

Creio poder afirmar

com toda a propriedade

antes ser assim

do que assado.

#3113

A boca sem aval

no auto frágil do dia

avança com as sílabas inteiras.

Injustiças indocumentadas (325)

Trás-os-Montes.

Traz 

os montes.

4.4.24

Harmonização

De todas as tochas

acesas as que simulam a sede

que nem mil rios encobrem

o hesterno pesar pela prosa vindoura. 

Ai de nós

que apoucamos a pele que temos

e por miragens nos fingimos heróis

vetustos a destempo

no contratempo deslindado 

sob os holofotes dos profetas desmentidos. 

De todas as tochas

empunho as que vertem lágrimas de seda

e desmontam os desperdícios de palavras. 

Desses

risivelmente gongóricos

em marés baixas que anoitecem avulsas

trocando sílabas por indolência

de todas as corrupções a maior.

Injustiças indocumentadas (324)

Das boas línguas

ninguém 

fala.

Injustiças indocumentadas (323)

Tira as teimas 

antes que 

as teimas te tirem a ti.

#3112

A fábrica do rancor

onde sangue e azedume

juram ódio perene.

3.4.24

Espelho baço

[Espelho baço,

espelho baço

diz-me 

quem a autoestima

tem em pior cadastro

do que a minha.]

 

Sei que não é poético

fazer um poema que começa por

varizes.

 

Antes que sobre mim se abatam

os anátemas

em minha defesa tenho a dizer

que só tentei ser

poeta.

#3111

Firmo a voz

na enseada matinal.

Arranco do medo

a gramática tutelar.

O choro do pássaro repentino

O choro do pássaro repentino

tantas as pontes sulcadas

entre a migração 

e onde a agulha da bússola

mandou aterrar. 

O choro

não por dor sua

antes o suar da dor dos outros

pressentida nas asas que abertas

recebiam ventos de diferentes paradeiros. 

O choro por procuração

não havendo quem queira desse choro

nem um duodécimo. 

O choro,

generoso 

antes de o pássaro 

querer aninhar na casa da partida.

2.4.24

Injustiças indocumentadas (322)

Um número redondo

é contra 

o seu quadrado.

#3110

Deixa o apogeu

como marca de água

a moldura que se aviva

na pele tatuada.

1.4.24

Gramática noturna

Na noite órfã, 

o sono perdeu o chão

para a rebeldia da insónia.

 

Depois da hora adiada

as paredes alvas desmaiam

e às mãos despoja-se a capitulação.

 

Sem a conjura dos demónios

avanço uma pétala

contra o penhor da noite.

Injustiças indocumentadas (321)

O medo

            existe.

 

Não

            o medo.

 

Existe

            o medo

                        não.

 

O medo

não

            existe.

#3109

Cabelos soltos

o vento que fala,

ou apenas 

uma miragem.

31.3.24

#3108

Muda a hora.

Muda,

uma hora.

A hora

não muda.

30.3.24

#3107

A luz rouca

numa fotografia

desenhada a preto e branco.

29.3.24

Injustiças indocumentadas (320)

Se o diabo

vendesse a alma

era licitação para demorar.

#3106

Às vezes

é preciso inventar

odisseias.

28.3.24

#3105

Nómada no lugar certo

esbracejo não-bandeiras

atiço o idioma recauchutado

beijo o amanhã desafiado.

27.3.24

Atribuições

Dar à corda

toda

imerso na audácia

e das baias do dia

trazer

mel que adoça a pele

e a ousadia

que sinaliza a coragem.

#3104

Deixa o sangue correr

as sílabas no seu tempo certo

o amanhã ser a fotografia capaz

um nome a estrofe prometida.

26.3.24

Ricochete

A sucata ordena o feixe da decadência. 

Não importa,

temos o destino cinzelado

no horizonte no seguimento do nariz. 

As luas sobrepõem-se

falam mais alto que as trevas. 

Todas as mãos são anónimas. 

Não há autoria

nem o embelezamento improfícuo

de personalidades exacerbadas 
no sangue em que correm. 

Diremos amanhã

Para a ata das intenções ditaremos

talvez

impropérios

agastados que estamos. 

Seremos

 

(pode ser dito sem recearmos represálias) 

 

dissidentes. 

Dissidentes

a começar

de nós mesmos. 

Injustiças indocumentadas (319)

Ninguém

morre

de amor(es).

#3103

A escultura 

muito assisada

com ares de exemplo

e nós deste lado

militantes da impureza. 

25.3.24

Injustiças indocumentadas (318)

As graças

não são todas

de graça.

Armadilha

Cabeçalho, cabeçudo

cabeção, cabisbaixo

canhestro, calhorda

sinistro, santeiro

simiesco, sinaleiro

armeiro, arabesco

alfândega, alentejano

bardo, bago

batráquio, balsa

poejo, paróquia

parteira, perfunctório.  

#3102

O norte 

pedia luar

como a noite

descerra o silêncio.