Ninguém perguntou
se o cavalinho
gosta de estar
à chuva.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O insuspeito dandy
desfila a pose aristocrática
sua é a medida do palco
em constante suspiração diletante.
A displicência metódica
esconde o tratamento subalterno
dedicado aos comuns.
Ao contrário
da teoria que tinha as esporas
a igualdade é só para enganar tolos
e nem é preciso encomendar os bolos.
A realidade desmentia-o
todos os dias:
na repartição de finanças
no café da avenida
na fila para entrar no aeroporto
no número do cartão de cidadão.
Não importava:
os pergaminhos voam alados
e não são ideólogos datados
que os desmontam.
O resto
ficava por conta do bigode excêntrico
da impecável consciência,
e de um inglês com cerrado sotaque de Derby
– como se isso importasse aos demais.
A meio do tempo contado
descobriu-se:
o dandy insuspeito
vota em partidos de esquerda
(e não consta
que seja de trocar quadrantes
nem de ter dissonâncias cognitivas).
Ora, ora
hora a hora.
[Dedicado ao anónimo que, numa caixa de comentários, comentou “hora, hora”]
Os espelhos admirados contorcem o riso
na inviável separação entre dia e noite
logo quando a penumbra extradita a luz clara
e muitos se exilam num muro subterrâneo.
As estrelas querem beijar a terra
ao que parece:
o tumulto contínuo açambarca as horas pálidas
arranjam foros de medo
que se estende por cima dos horizontes.
Num sonho por amanhecer
os pés vagueiam em cima de nenúfares
combinando os violinos pontuais
com a matéria que desembaraça a noite.
Em dias assim sombrios
na boca estalam palavras frugais
antes que sejam idioma em rota de colisão
com a gramática
antes que possam vir a ser
literatura deitada no penhor/da visibilidade,
literatura em desfado lancinante.
As palavras não deviam dormir em espelhos
disse um poeta
bebendo na excentricidade
de que se diz mecenas:
deitem-se às candeias as frases soltas
posfácios de edições prometidas
ou meras declinações de estados de espírito
(se é que se pode aceitar
a existência de espíritos.)
Um pai gasto ensina o resto;
as aguarelas fogem da tela
odeiam molduras
têm-nas como cárceres enegrecidos
vertendo ferrugem sobre o pensamento.
Amanhã será manhã outra vez.
E nós
combinados com as estrofes inaugurais
ciciamos a moratória do medo
contentes por não sermos reféns de tatuagens
que escondem os poros puros
que à pele têm como matriz.
Uma coleção de monos
que tanto cheiram a naftalina
e nem assim
previnem o caruncho.
[Instruções para uma vista de pássaro sobre as instituições à sua volta]
Os cães
estão sempre de atalaia
ladram repetidamente
estilhaçando o silêncio da noite.
Dizem
que não mordem
se calhar
porque de tanto ladrarem
ficam doídos os maxilares
e anestesiados os dentes,
ou então é só para provar
que o muito ladrar não quadra
com as mandíbulas certeiras
que despedaçam carne exposta
de gente alheia
que ao perímetro dos cães vier.
Ou então
é só para confirmar
que os cães se inspiram nos homens
e as gongóricas vozes de protesto
depressa são amansadas
com a acepipe certo.
Sem remorsos por contar
os dias fazem-se feridas abertas
e o tempo mastiga o sangue à mostra
como mosto de um ódio fermentado.
Forjado a ferro
no anátema dos insubmissos
um nome ganha nome,
desamarradas as algemas.
Nos despojos onde não há santos
as palavras cruas tatuadas na carne
bem fundo
onde a carne se junta aos ossos.
Depois de consagrada
embebe-se no vinho floral
propositadamente aberto para a solenidade.
As elegias temperam páginas de xisto
vingam nas bandeiras arrematadas ao cais
sem crime preponderante
sem que haja quem reivindique
a sua perda.
Não podíamos
ornamentar as flores avulsas
diziam:
é uma litania
um gesto do permitido aos deuses
e não somos deuses
não somos premeditados.
Fossem outros
os tempos e o modo
e seríamos derrotados pelo sobressalto
de não conseguirmos ser deuses.
Agora
o mel ferve na boca
que cresce no perímetro das palavras
costuramos os bolsos puídos
porque há amanhã
soltamos as feras domesticadas no adro
onde subimos a palco
e
sem o pudor de outrora
entoamos poemas.
Agora
não somos vítimas da nostalgia
não obedecemos se não às desregras
aos murmúrios que emprestam musgo à noite
e pelas mãos perenes
deixamos paredes untadas
com as lágrimas de outrora,
que agora perdemos o pudor
e sabemos que as lágrimas
também embelezam epitáfios.
Digo
para que possam ouvir
que não sou presa do medo
e que dele me apoderei
para o desfazer em mil pequenos seixos
anónimos e indiferentes.
Povoo o dia com centelhas
com a ajuda da maré
e baixo a cota das árvores
para a elas subirmos
só para sabermos como o nosso domínio
não nos é submisso.
Quando era pequeno
fiz uma visita de estudo
aos estaleiros da Lisnave
e um engenheiro,
em jeito pedagógico,
disse aos curiosos e aos não curiosos
que hélice é uma palavra masculina.
Anos mais tarde,
depois de ter ensinado alguma gente
que se dizia
o hélice,
espreitei no dicionário:
hélice
é uma palavra feminina.
Já não fui a tempo
de corrigir o erro:
não consegui inventariar
as pessoas que burlei.
Amorteci o desencanto interior:
a culpa
foi do engenheiro
e minha,
que confiei na diligência do engenheiro.
Nunca mais confiei em engenheiros
(como a História política
tratou de demonstrar).
Começo por uma metáfora;
um estaleiro
a imagem periférica da desarrumação
e todavia os operários aninham-se
num cais organizado
entre o cais em escombros
e a maré que beija os destroços
a lamber as feridas deixadas em legado.
O fósforo acende os acrónimos do dia
desmata
as estrofes coibidas por mastins esfomeados
mastins que arrumam as bainhas da ordem
para o anátema da remissão.
Não
não peçam a cor do perdão
a espuma demorada
que amarra no canto da boca
não arranjem desculpas
nem arrematem os mais generosos de todos:
os olhos répteis mergulham na floresta
esconjuram os cruéis mandantes da dissidia
terçando o florete contra os indefesos
arrumando nas mãos as vitórias fáceis
– as vitórias por falta de comparência.
No banquete dos indigentes
o que falta é modéstia
um verbete de temporalidade
e um pouco de voz apessoada:
fazem-se passar por mártires
dando-se à coreografia surda
que se prende à maresia:
o ocasional bocejo sublinha
a continência imperatriz
e as palmas troam em surdina
como metáteses do aplauso:
não lhes falem em medo
os ouvidos fingem o esquecimento
e o futuro apalavra o fingimento do tempo
exatamente como se uma divindade
tivesse ordenado a suspensão dos relógios.
Que sejam ateadas as estrofes mundanas
os profetas em barda
ficando nas filas terceiras
os eruditos sem microfone já de garganta puída
e todo o clero pavoneando as fátuas fatiotas
numa procissão de falhados.
Se não fossem as vozes guturais
o silêncio era a marca registada.
Vozes improfícuas
adoçando as folhas do calendário
assim como um pai adoça o rosto da filha
avançam destemidas contra o mar cavado
e prometem:
um dia destes
(é sempre um destes, inseguros, dias)
voltaremos a ser a grandeza que esquecemos.
E ninguém
percutiu os lábios amansados
só para perguntar
o que importa
a grandeza.
As paredes tinham o musgo inglês.
Aquele lugar era trespassado pela humidade.
Os ossos desdoíam quando contemplavam
a colonização dos degraus pelo musgo,
como formava socalcos improvisados.
Há colonizações apreciáveis.
Ao cuidado de todas as cidades
que se chamam vilas:
por que não deixaram de ser chamar vilas
quando foram promovidas de patente?