1.11.24

#3307

Dançava no fio da incógnita 

o corpo avessado

tartamudeando as sílabas disformes.

31.10.24

#3306

O braço da rendição 

aviva o estuário

e foge à moldura embainhada.

30.10.24

Vendaval

Deixassem falar o vendaval.

Na sombra do sangue agitado

cabiam cinco noites sem dormir.

 

Oxalá 

os pescadores não tivessem ido ao mar.

 

Agora 

as mulheres 

sentem-se viúvas em desassossego

como se contassem a gramática do medo

como prece contínua.

 

Maldito 

era o vendaval.

Não lhe tivessem dado nome

e ela talvez não se amotinasse.

#3305

A tocha acesa 

incendeia as lágrimas errantes 

no distrate do baraço 

que emproava a forca.

29.10.24

Olhos voluntariamente vendados

Vejo 

na alma do mundo tantas cicatrizes

o espólio que se atira de frente 

contra o muro do passado

e em várias toneladas de conhecimento

chega ao estuário exangue, 

extinto.

 

Vejo

as pessoas sem nome

ou com nomes que não sei dizer

reféns de uma penumbra que os atiça

no vulcão perene que os consome

vejo

como falam um idioma que não percebo

e se entregam no luar que é o abismo

disfarçado.

 

Vejo

no miradouro furtivo

as pernas tremidas à medida que avançam

e dos nomes extintos se aproximam

vejo-os

aluados e impassíveis

como se não pudessem ser mais do que peões

ou carne para canhão

que ainda dá direito a uma comenda póstuma

que os heróis querem-se póstumos.

 

Vejo

com as dioptrias todas no ângulo vivo da visão

os banquetes que omitem a miséria

o ultraje dos comendadores em pose hierárquica

um desmodelo afinado pelas mãos usurpadoras.

 

Vejo o que vejo

e desejo

que não visse nada do que vejo.

#3304

Depois da fala 

arrumaste o pensamento 

no gueto que é sua prisão.

28.10.24

#3303

Sem empalidecer

a luz branca agarra-se 

à pele do dia.

27.10.24

Injustiças indocumentadas (451)

As armas 

são uma falcatrua tão grande 

que uma arma branca 

nunca é branca.

#3302

Uma tocha 

apagada 

o sonho do nevoeiro 

e os bombeiros, 

em greve.

Injustiças indocumentadas (450)

Solteiro

ou

bom rapaz.

26.10.24

#3301

Amuro-te estima, 

para que te não perca as rédeas 

e não seja peão da boçalidade.

25.10.24

Os amantes

 

Explosions in the Sky, “Loved Ones”, in https://www.youtube.com/watch?v=ogFLy72Ox4k

Púnhamos as vozes a falar

nós, os arquitetos das palavras,

até que as destinássemos a poemas válidos.

A matéria incandescente a desejar a manhã

um punhado de violinos em desordem

até que as estrofes 

combinassem o silêncio que era alquimia.

Não soubemos das coisas tardias

era em nós que as levávamos

sem sabermos

só por as querermos combustão

e toda a cumplicidade a nascer de um sonho.

Falávamos pelas vozes sem silêncio

os punhos ascendendo ao miradouro

onde o vento secava as lágrimas.

As lágrimas

tornadas pétalas de ouro

tatuadas na pele sem adiamento.

Pretérito muito imperfeito

Boas não são as novas

quando o verbo ser 

é usado no pretérito imperfeito

e depois vem o nosso nome.

#3300

A perna curta das ideias 

ou o olhar fundo das palavras.

24.10.24

A contingência da incerteza

Falava-se

do porvir

aquele que ainda está por vir

o futuro

se não usarmos erudição gratuita

à falta de se poder dizer

“a deus pertence”

 

(o registo de interesses

agnóstico

impede o reconhecimento do estatuto 

– e, dê por onde der,

deus

se existisse

dificilmente queria saber do futuro

porque 

se existisse

por definição de omnipresença

já sabia do futuro

de trás para a frente.)

 

Daqui para diante

a começar 

no minuto que começa

dentro de sessenta segundos

é por conta da incerteza

um buraco negro

onde tudo se pode arrematar

uma coisa e o seu contrário

ou antes pelo contrário

ou então aquele nada 

tão grande, tão grande

que cabe na estatura de uma molécula.

 

Quanto ao demais

ou à conta da contingência da incerteza 

é um bla-bla-blá

e o que mais se queira querer.

#3299

Se fosse a correr atrás do caudal 

não seria o rio maior ou o mar terminal 

nas mãos em meu legado.

23.10.24

Injustiças indocumentadas (449)

Deuses com pés-de-barro, 

ou seguidores com pés-de-burro.

Injustiças indocumentadas (448)

A contagem de espingardas 

devia ficar para os analfabetos.

#3298

E respirar,

(também)

é um problema ambiental?

22.10.24

Taberna

Os estreitos becos

onde se atiçam palavras fiéis

contra os empossados patriarcas 

são os mesmos

onde caem sem batalha 

os que se agarram a medalhas colossais

os indigentes disfarçados de eruditos

pândegos todavia não autenticados.

#3297

Dou ao vento por domar

as asas quebradas 

de um oráculo por inaugurar.

21.10.24

#3296

O que sobra 

é um caudal generoso 

a lupa que arbitra a fala.

20.10.24

Injustiças indocumentadas (447)

Ficou com os louros 

e deixou ficar os morenos.

#3295

Um vulcão averbado

um corpo prometido 

a erupção sem demora. 

19.10.24

#3294

As palavras sem peso 

adejam sobre o dia plúmbeo.

18.10.24

Vital

As cordas ensanguentadas

tomam o entardecer por adeus. 

 

O olhar desmaiado

ecoa no horizonte embaciado

como uma espada contraída

com medo do crepúsculo.

 

A noite

atravessada pela voz diluída

não foge dela mesma:

ainda hão-de saber

os vencidos pela insónia

que há sempre verbos 

no dicionário sem paradeiro.

Injustiças indocumentadas (446)

É igual ao litro: 

o litro 

que vale nada.

#3293

No fuso das marés

os dias desfilam

não precisam de parada.

17.10.24

Andamos todos ao mesmo

Afundo a porta

antes que a porta seja o fundo. 

Estilhaços polvilhados sobre tapetes persas

carimbam a impressão digital da civilização

que ainda está à espera 

de aspas a preceito. 

O corrimão gasto

gosta de mãos;

como uma verdade insofismável

odeia filósofos.

No fundo

como os engenheiros detestam demolições

a não ser que sejam os pais 

da obra consequente. 

Andamos todos ao mesmo

pressentiu

como quem tem um oráculo sobre o passado

o videirinho que da aldeia 

aterrou na cidade-véspera de outras metrópoles

e, encantado em saber que há ajuntamentos

com mais de três pessoas,

escalpelizou os malefícios da mortandade. 

Pois é,

andamos todos ao mesmo.

Só que uns

vão a velocidade deferente.

#3292

A cidade estremunhada 

entre a saliva da noite

e o penhor da manhã 

pergunta: e agora?