26.2.25

Os colarinhos do dia

Agarro o dia pelos colarinhos

desafio-o 

a ser o lado visível da coragem

a sair do lodo em que se consome.

 

As flores não se escondem nos canteiros

nem quando a tempestade vira tudo do avesso:

 

o dia 

não pode ficar por menos

só precisa de ser agitado

fortemente convulsionado 

pelos colarinhos

para se libertar do torpor suicida.

 

Ai do dia

se sobrar impávido

e os colarinhos vierem puídos:

 

ainda confiamos no dia

não precisamos que ele seja embaixador

da apatia que nos condena

a vegetar sem ânimo de coisa diferente.

Injustiças documentadas (512)

O que há a dizer dos amigos do alheio 

são duas coisas: 

primeiro, 

são de uma generosidade desarmante 

(são mais amigos do que não é seu); 

segundo, 

medram na antítese do narcisismo. 

#4027

Um figo doce 

ajaeza o adro

respira pelos poros

da calçada cerdosa.

25.2.25

Vesúvio

O que deixarmos sem tréguas

será a caução gasta dos impérios a destempo

o gume acertado no roseiral

enquanto se fabricam dádivas

e as palavras entontecem na magreza da maré. 

Os deslimites juntam-se aos patriarcas do medo

que falam idiomas incontinentes

e exibem as joias intensivas 

que pesam sobre o peito válido. 

Não aceitamos conspirações

nem damos troco a déspotas

no reino nosso sem hino nem nome

destinamos ao enfado 

os que aparam a língua puída 

e desfeiteiam as páginas límpidas

as que haviam sido resgatadas

ao céu luminoso que dava nome

ao horizonte.

#4026

Por um fio

Ariadne salvou o mundo.

24.2.25

You get these words wrong

You get these words wrong:

 

finjo

fujo

dou-me

às palavras fungíveis. 

 

You get these words wrong:

 

amortalhado, não

nem murado

pois antes

mestiçado

corrijo as palavras

em proveito próprio. 

 

E portanto:

 

leave me alone,

 

sentinela

subindo à lapela

sulcando o precipício

o sinédrio da sabedoria

em cestas ensinada

sideral

no centrípeto salão

das palavras em forma 

de senha.

#4025

O sono sonso 

açambarca o siso 

e assombra o barco 

que assoma no sonho sumido.

23.2.25

#4024

O acepipe avinagrado

o corpo arrastado 

de um régulo sem cajado.

22.2.25

Injustiças documentadas (511)

Está talhado

para ser salvífico 

mas desconfia-se

que não tarda a talhar.

#4023

O gatilho sem sombra 

as reticências ingratas 

a boca que não se esconde 

no silêncio.

21.2.25

#4022

Não somos santos nem magos 

nem à conta de tamanho infortúnio 

apascentamos mágoas.

#4021

Conta-me tudo 

não deixes que o silêncio 

seja língua franca.

20.2.25

Geometria descritiva

A colheita dos vis

avizinha-se no espelho riscado

rosnam os desavisados sem pudor

apequenados no vulcão despenhado

dispensando o grotesco rumor da turba. 

 

Não seja pela vileza desanónima

o fausto crepuscular que esbarra na clepsidra

um estilhaço misturado com a carne

a matéria corrompida no altar dos farsantes

e tudo o resto

 

destroços abraçados a comendas

o justo rugir que substitui os idiomas.

Injustiças documentadas (510)

Travou-se de razões 

antes que as pastilhas 

ficassem gastas.

#4020

O corpo tépido

no incenso da manhã

agiganta o verso do dia.

19.2.25

Vigia

As luzes escondem-se no labirinto do corpo. Não mentem: averbam as juras desprezadas nos despojos de um tempo sem sinal. Somos sentinelas dos sonhos sem paradeiro, como se déssemos nome ao estuário que abriga os navios. Emprestamos luz ao mar. E ouvimos dizer que o mar está de vigia por nós.

#4019

Chora por ultimato 

a coragem 

não se vende às palmas.

18.2.25

Trama

Corres atrás da fonte das palavras

os dedos juram estrofes sem medo

como se apostassem na redenção. 

Desdissesse as juras amontoadas

os vultos então emparedados

condenados ao silêncio

e a noite enfim soberana na escolha

dos sonhos desembaciados. 

 

Os apeadeiros não tinham nome

como as pessoas não tinham nome

e eu sabia

no provisório desdém da verdade

que as profecias nunca têm validade. 

 

Chamava pelo ciciar da fala perto

um miradouro às escondidas

os corpos insinuados nas sombras revezadas

até que as portas desembaraçadas

se abraçavam às sentinelas sem freio

levantando as credenciais 

e o medo cristalizava em leves socalcos 

só à espera

de o luar confirmar 

a voz penhorada da noite.

#4018

Antes que o satélite do asnear 

entre em órbita

guarda 

para memória futura 

o artefacto da lucidez.

17.2.25

A maravilha da espécie

A pauta espoliada

à guarda dos centuriões

desmata os segredos de outrora

válidas arcadas sobranceiras ao espetáculo

da vida. 

O gelo finge as fissuras 

imita a estultícia sem rodeios

as pagas por haver no débito sem inventário

como as bocas pasmadas 

que esperneiam com o toque de Midas 

– o operário nas horas vagas da humanidade –

combinando as sílabas destronadas

com os episódios de humildade

que conferem, 

enfim,

a maravilha da espécie.

#4017

A sentença da manhã 

derramada sobre os rostos inaugurais 

conta os versos que saciam a letargia.

16.2.25

Injustiças documentadas (509)

Não tenho cabeça 

mas não ma deceparam.

#4016

A bola ficou na rede. 

Lamenta a orfandade 

sob o esgar tirano da rede. 

15.2.25

Injustiças documentadas (508)

A culpa já vive 

em união de facto.

#4015

Mantemos as cortinas hasteadas 

interditamos os olhares forasteiros 

como manda

a reserva do direito de admissão.

14.2.25

Amor sem máscara

Não fujo do tempo enquanto habito a luz decantada pelo teu olhar. 

Subo pelo corpo que me salva sem precisar de arnês.

Descubro o miradouro onde o vento esconjura os pesadelos.

É à noite, depois da solidão derrotada, o desembaraço das almas deixa-nos a contar histórias.

Essa é a enciclopédia que escondemos do futuro.

As sílabas apenas sussurradas. 

Levitando o poema que escrevemos a quatro mãos.

Injustiças documentadas (507)

Para quê 

pano para mangas 

se está tanto calor.

#4014

A corda embuçada

aperta a jugular do dia 

e as pessoas fingem que é ontem.

13.2.25

Desfalque

Não é dorso que dança

no improvisado verbo que se avessa. 

O denso dardejar dos dedos

ensaia estrofes no estuário ensinado

o vago ondear que vagueia nas onomatopeias. 

Fujo afivelando os fusos como alfinetes párias

o troar que olha de longe os tribunais

no adro ladrilhado pelo silêncio ladino. 

As horas fogem da horda

o militante dever misturado com a cidadania

versos avisados no volante da vontade

ou apenas as penas à revelia do revés. 

Faço campanha sem a taça por companhia

eu

acidental comparsa de vultos sem pressa

aviltando o ocidental compadre das farsas

no povoado onde se aviva o coloquial. 

#4013

Somos ilhas

sem mar imenso

à ilharga.