Uma fotografia
arrependimento venal
tirania da memória
bebida no sangue diuturno
nas danças demenciais
nos dias furtivos
escondidos da História.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A poeira não sobe à boca:
não está vento de feição
e neste cais
as paredes são fortaleza.
Os tumultos desfazem-se na maré
elidindo os sobressaltos com escritura
dissolvidos num nada sem vestígios por dentro.
Sem os olhos embaciados
a transgressão esconjura-se
e ficam por contar as centelhas venais
contra as miosótis promitentes
e as páginas esplêndidas que amanhecem
a despeito dos maus prognósticos.
Os rostos
amontoam-se nas esquinas da memória.
Não falam:
passeiam as suas expressões sintomáticas
com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,
a proverbial consumição das palavras vãs.
As folhas das árvores ainda não estão caducas.
Resistem
como só os espíritos enraizados sabem resistir.
Daqui a uns meses
quando as folhas cadáveres derem à estampa
saber-se-á da linhagem das gentes
se conservam a volumetria de deuses improváveis
ou se capitulam
na sincera decadência da sua fragilidade.
Um astrolábio rudimentar
como oráculo:
se fossem visíveis
as constelações apareciam
com os nomes de flores
e os nomes outros seriam
imitação das constelações.
Dizias:
não quero outro paradeiro
a não ser as tuas mãos desordeiras
e eu concordava;
os molhos de jasmim
cuidavam da minha estultícia,
a estultícia
(julgava eu)
irremediável,
à mercê do teu patronato diligente
em forma de dissolução desse mal.
Teríamos estrelas de atalaia
no intenso precipício acobreado
o breve flúmen pendido no fundo
quase renunciável
quase martirizado pelo estio a desoras.
Sabes:
remexi a terra emoliente com as mãos nuas,
nem parece meu, eu sei,
e de lá trouxe os miríficos saberes
que não se cuidam em compêndios vetustos.
Se as constelações arcarem os nomes de flores
sabê-las-ei de cor
mesmo nada sabendo sobre as flores
que têm esses nomes.
Sossegas-me
contemplativamente juntando ao havido
que esses são nomes furtivos
como se pertencessem à curadoria
das estrelas-cadentes.
Os ecos
património ou destroços
em equação que sinaliza
a vontade desembaraçada.
Os ecos:
o que fazes com eles
é gramática que é teu assunto
fabulosa erupção sem som.
Desse estendal
retira para o lado
as mentiras sem quartel.
Os estilhaços do Verão
juntam-se às algas
em despojos onde a maré termina.
Os espíritos estivais protestam:
o Verão devia ser mais duradouro
apesar dos corpos suados
das noites de sono embaciado
das ideias anestesiadas
do torpor hasteado em nome do cansaço
herdado do tempo precedente
ou talvez
apenas por causa
da indolência que não paga multa
na demorada temporada
do mui constitucional direito ao ócio.
Os estilhaços do Verão
pressentem a temporada consecutiva
o rame-rame outra vez
o adiamento das coisas que importam
a perene sensação da exiguidade do tempo
a sensação de tirania
exercida sobre quem da faina precisa
para manter o pescoço acima da linha de água
(um eufemismo para a sobrevivência).
O terrível nariz de mostarda
espera pela suite prometida
pois
aos odores não se atraiçoa o delido.
O palco não se desfaz nas paredes caiadas
se ao alpendre subirem as divindades perdidas:
pratique-se à besta casmurra
o mesmo destrato que aos tiranetes:
colheres de mostarda de Dijon a esmo
até as veias do cérebro se esgotarem
nos filões ávidos de ideias
lisérgicas.
Os idiomas falavam à vez.
As bocas procuravam nomes
como quem encontra uma morada.
O dia era o espelho das traduções.
Nada ficava por entender
não por falta de correspondência
entre os idiomas.
Alguém supôs um idioma universal
mas todos recusaram a intenção.
A língua franca
condenava os idiomas à insignificância.
Todos
(menos os eruditos do idioma franco)
baniam as intenções
que baniam a biodiversidade das línguas.
Os idiomas falavam à vez.
Mas falavam todos
uns com os outros.
Não sejas modesto
na poupança de metáforas:
o carrossel de palavras é o passaporte
para um idioma sem cansaço,
a avassaladora marca registada
que o cofre reserva
à tua guarda.
Sete são as chaves
que aferrolham os tesouros;
seis não satisfazem a função
e oito serão de mais.
A matilha
não obediente
suprime as normativas:
são os seus próprios anarquistas
e vítimas prediletas.
A carne não sangra;
canta
com os dentes entumecidos
e a gola da alma de atalaia.
O corpo que vocifera
rima com o idioma rouco
e é como se todos,
em uníssono,
pudéssemos morrer à nossa vontade.
[Idles, Vodafone Paredes de Coura, 17-18 de agosto de 2022]