24.8.15

O devorador de lugares

Passo pelas curvas traiçoeiras
pelas terras áridas
pelas mãos várias.
Passo pelas luas coloridas
pelas avenidas largas
pelos poços escuros.
Passo pelas cordas de uma guitarra
pelo musgo do cais
pelas voltas de um carrossel.
Passo pelas asas de um corcel
pelas pedras pontiagudas
pelos antros temíveis.
Passo pelos lugares todos
e por outros que aprouver
guardando as facas no bornal da memória.
Passo.
E as mãos tremeluzem
só de saberem o passo pelo passo estugado
nos olhares diferentes
nos cheiros da terra
e pelas singulares estrofes de um poema
sem sal.

16.8.15

Tesoura de poda

O ouro fundido nas nuvens.
A alquimia do dia
adocicada nos frutos colhidos.
As flores, vetustas,
sereias delgadas em formosa coreografia.
A vontade segredada em rima
um esteio solar.
Valem as cartas jogadas.
Os trunfos capazes
num naipe entre as mãos suaves.
Das nuvens douradas
uma chuva sortilégio.
Diurna.

14.8.15

Maçã de Adão

Fez-se constar que o pecado
ficou entalado na garganta de Adão.
Ofereço as minhas dúvidas.
Não se fez constar
que outra além de Eva
tenha sido apetite do Adão.
Termos em que uma interrogação
É servida em lume brando:
o que está atravessado na garganta de Adão
por que ficou nesse estado?
A menos que Adão
tenha ocultas amantes e grasse na mentira
ilustres doutores de medicina
são convocados a depor.
Dispensem-se os homens da lupa em riste
em demanda da consciência do Adão.
Faço constar
em porventura especulativo exercício
que os letrados em medicina diriam
ser o bagaço do vinho roubado
em caves de abastados proprietários
que cristalizou na garganta do Adão.
Vingança destes
(ou lembrete divino)
Adão amanheceu com a garganta protuberante.
Jamais se leu tamanha versão dos factos.
Se não
Marx chamar-se-ia Adão.

13.8.15

Sangue quente

As veias em ebulição.
Fervem no contraste das facas depostas.
O sangue levita
em sucessivas ondas convulsivas.
Depois vem o suor
em cascadas descendo a pele ruborizada.
A contemplação das coisas
obnubilada pelas persianas que descem
sobre o dia.

O aroma das framboesas
repara os males possíveis.
Refresca o olhar que tergiversa:
enxagua o suor decadente
mapeia as veias frementes
até que o sangue se sirva em arrefecimento.

Mas pode ser efémero:
que a faca do tempo resolve
num ardil premeditado
desatar uma tempestade sem agenda.
Fica tudo à mercê do caos
e o sangue volta a ferver
por dentro das veias incendiadas
devolvendo o suor ao corpo num frémito.

É sabido
as tempestades são efémeras.
E por mais que sejam duradouros
os seus efeitos
o corpo não aguenta duradouramente
a combustão das veias
que é nutriente do sangue quente.

Cessa o suor.
Cessam os sobressaltos
que amesquinham o tempo presente.
Cessam os vagares
que aprisionam o tempo.
O céu desprende-se da cortina de sombras.
Resplandece
nas suas cores vivazes
lembrando que apenas importa o dia presente.
Resplandece
o céu admirável
perfumando o tempo
com  o aroma das framboesas.

Lá longe
o sangue quente já é só
matéria do reino das memórias.
É sabido
o efeito heurístico das tempestades.

11.8.15

Pele lavada

Já sabíamos
os mistérios da alvorada.
Éramos armadores dos seus segredos
enquanto a bruma subia por cima
da copa das árvores.
Já sabíamos
que as lágrimas furtivas
não se embebiam em fortuna.
Éramos lugar-tenentes da sobriedade
e nem nas folhas rasteiras víamos ardil.
Já sabíamos
a sapiência dos mastros.
Éramos forcados ambulantes nas hastes alheias
e no fim levávamos o troféu.

Já sabíamos
que o mel e o ouro são nossos.
Por mais que o mar cicie o contrário
as mãos colhem das algas a maresia inteira.

Já sabíamos
que os poros se enchiam de luar.
Éramos argonautas sedentos do neófito
em forma de coroa de diamantes.
Já sabíamos
que o suor se insinuava nos poros.
Éramos ambidestros na decantação da cicuta
enquanto a lua nova antecipava a luz inteira.
Já sabíamos
que os olhos se enchiam em troca.
Éramos timoneiros de todas as naus
em que olhos doirados fossem embarcadiços.

Já sabíamos
das rosas com espinhos abruptos
das uvas amarelecidas e gastas
dos rios desbragados, iracundos
dos espíritos macilentos
das arcadas desabitadas
(e daquelas habitadas por inumana gente)
do restolho das árvores
dos ocasos dedilhados na fronteira da lucidez.
Já sabíamos
tudo isto e outro tanto.
Éramos os diligentes penhores das palavras
enquanto cerzíamos a intensidade
por dentro de nós.

Já sabíamos
que só podíamos contar
com os frutos que nascem das nossas mãos.

10.8.15

A agulha e o palheiro

Fecha o livro
fecha a boca
(não tem serventia ficares boquiaberto).
Não adianta acenderes velas
nem as preces aos anjinhos.
Esquece as ajudas
de quem pudesse ser ajuda
atira as esperanças contra a rede apertada
deixa-te suar
que ao menos o suor evapora a ira.
Tens um palheiro sem fim
e uma agulha para encontrar.
Deitas fogo ao palheiro?
Não compensa o arresto
por não valiosa agulha.
Pode ser que antes
te cheguem os vapores da loucura.
E então
tomado pela demência
um cálculo sem cálculo te faça aterrar
no terreiro onde acama a agulha.
E depois
desidratado de tanto porfiar
perguntarás às perguntas
para que serve aquela agulha.

6.8.15

Salto no escuro

As portas blindadas intimidam.
Mandam-se relógios contra elas:
sem efeito.
No chão três gatos
debatem-se com os despojos
do restaurante mesmo ao lado.
Bulham por um pedaço de bife
diante da indiferença das pessoas.
As férreas portadas
inamovíveis
são como elefantes em hibernação.
A vontade não se demove
nem por ver que as portas não tergiversam
acossadas pela ventania do ciclone.
Engendra-se estratégia
para o esbulho das portas.
Passa pela descoberta da chave.
Ou
como fazem os ladrões
por forjar uma chave
que deixe à mostra
a penúria da aristocrática porta.

4.8.15

Maresia

Maresia ao entardecer.
o frescor do vento esbarra no rosto
e eu respiro este perfume
que sacia os sentidos.
A maresia encomenda os sonhos
já não desterrados em paisagem etérea
antes
transfigurados matéria viva.
Desta maresia nutriente
refrigério que aplaca vultos
estonteante avenida:
onde a maresia dá forma
ao trono dos príncipes eternos.

3.8.15

Apólice

Não é em cima do joelho
que se alçam as mordomias do tempo.
É em labor reiterado
com destreza incluída
e uma certa dose de inspiração.
Não é ao calhas
ao deus dará
nas mãos de um oxalá qualquer
em lugar da falta de brio madraça.
Esta é a apólice
a imperativa apólice.
Para à noite
os pesadelos
não serem com as veias em suor.