9.9.18

Imaterial

Um remédio sem remédio.
O nevoeiro sem prazo.
O sorriso no canto da boca.
A porta entreaberta.
O gato preguiçoso.
A bússola perdida no cais.
A precisa delimitação do espaço.
O néon timorato.
A voz rouca que é tumulto em cena.
A criança com o olhar perdido na aurora.
Um balão sem oxigénio.
A fábrica dos sonhos sem paradeiro.

#718

Fortuita,
a erva daninha
não pesa.

8.9.18

#717

Mosto sem bolor
extorsão das palavras feridas
no púlpito da pureza incensada.

7.9.18

Antijogo

Dionísio protestou
na ciclovia que o distancia de casa
“tenho as rodas nas pernas
enquanto a maresia abusa da atmosfera”.
Dionísio não sabia ao que ia.

Desfiado por uma subida
acendeu os faróis
e fumou um cigarro
(se acreditasse, entoaria uma prece):
ele há milagres 
que encontram cais no inesperado.
Dionísio disparou impropérios
não poupando no vernáculo
(ninguém o ouvia)
(e desta vez 
os impropérios não eram 
contra a maresia):

a maldita subida
parecia só terminar no céu.

Arrependeu-se da analogia.
Nunca se sabe se um deus atento
tomaria aquelas palavras à letra.

Dionísio preferiu o antijogo.
Desceu da bicicleta
e no contratempo das pernas tremeluzentes
tomou lugar na esplanada
à espera do vinho salvador.
E à espera da descida prometida.

#716

No rastilho da madrugada
vozes de chumbo
entretecem conspirações.

6.9.18

Temperamento

Vamos às furnas
onde as mãos naufragam
sob as raízes de tudo,
sem medo da tepidez agressora:
tiremos dos claustros escondidos
(onde se enquistam esteios)
a base das interrogações
a frondosa abóbada da incerteza
em coloquial discurso sem arestas
e deixemos de véspera
os categóricos imperativos
as certezas assim sufragadas
o ensimesmar das palavras feitas
e cuidemos da estultícia própria
se daquele modo persistirmos.
Deixemos para memória futura
o travo doce da valedoura insignificância
pois de minúsculas ilhas não passamos
num abundante mar 
que nos devolve ao procedente anonimato
células só visíveis ao microscópio
de um olhar quase sempre desatento.
E depois de às furnas irmos,
e de lá erguermos as mãos inundadas
na água manancial fértil em humildade,
firmemos o passo no tapete singular
onde as fotografias de tudo se agigantam 
no olhar reinventado,
insaciável.

#715

Amanhã é sempre diferente.
Crua levitação
contra o pesar sombrio do tempo.

5.9.18

#714

Rasurado
e contudo
o nome medra.

Arrependimento

Rasgo o inverno
no interstício da noite,
plausível maré dos dias soalheiros.
Não será por ser pálida
a luz timorata,
embaciada em seus limites
por uma lágrima do mar.

À janela do porvir
bebo do cálice cheio
a maresia quimérica.

O solstício pode esperar:
ajuramentados estão os dias maiores
e a alvorada não demora
na intempérie do sono.
Depois de rasgado o inverno
um galope tonitruante
(sem dar conta do calendário folhear)
enfeitado por relâmpagos primaveris
e o estio espera na soleira
em sua insuportável demora.

Antes não tivesse 
rasgado o inverno.

#713

À moda de lamento (lacrimoso):
“tudo o que faço, desfaço”. 
E eu perguntei
se desfazer não é fazer outra vez.

4.9.18

Licenciamento

Pedi licença ao adiamento
que as varizes do tempo
não libertam espaço em proveito;
pedi licença ao atrevimento
que a insónia do conhecimento
não transige com o comedimento;
pedi licença ao aconselhamento
que a litania da liberdade
não é fautora de paternidade exterior;
pedi licença ao aproveitamento
que o lustro da memória
não aceita o soez oportunismo;
pedi licença ao aviltamento
que as apodrecidas palavras alheias
às vezes são caução da mesma má moeda.

#712

Meias são as verdades
sem eco no radar.

3.9.18

Roda da fortuna

Como se garimpasse
a roda da fortuna
no sortilégio alinhavado
dos versos estatuídos. 
Empilhados nos armários arcanos
o desafio salubre
na modesta revista dos modos. 
Talvez fossem fungos
ou uma bolorenta camada
em sinal de terem sido treslidos
os copos combinados
onde repousava a bebida combustível. 
Não houve tempo
para embainhar as perguntas a preceito. 
Uma revoada de palavras
atropelando-se numa vertigem colapsar
tomou conta das rodas dentadas. 
A roda da fortuna
foi devolvida à procedência:
infecundo oráculo domado pela cegueira
sem o préstimo das coisas não servis.

#711

Num exorcismo piedoso
as notas musicais
são o crédito ponderado.

2.9.18

#710

A corrupção meritória
é a que corrompe a mentira.

Centímetro

Do lago
o dorso do nevoeiro
sobrepõe-se ao leito contumaz.
Os pássaros
em recusa de serem madraços
cantam o peso arqueado
sobre as arcadas do orvalho.
Ao céu
tira-se um pedaço
a favor da história do presente.

1.9.18

#709

Na tabuada dos verbos
escolho os que ornamentam o dia
com uma aguarela.

#708

A maré baixa
concede tréguas 
à soberba da maré antecessora.

31.8.18

#707

A vitamina da empreitada
fortuna em forma de receita
e não está à venda em farmácias.

30.8.18

Conhecimento

Eu sei
o vulgo sem rosto
no vulto do tempo.

Eu sei
às claras e sem medo
o tribuno sem fala.

Eu sei
se na espera me paciento
em remoinhos tangentes.

Eu sei
na hirsuta noite
os arbustos estéreis.

Eu sei
os nomes sem vogal
nas entrelinhas da memória.

Eu sei
na manhã madraça
a cor das estrofes desassisadas.

Eu sei
tudo o que quero saber
na volúpia do saber.

#706

A semântica atordoada,
covil da anestesia imberbe.

29.8.18

#705

(A melhor declaração de amor)
Quero mostrar-te o que não vi
e ao teu lado
saber o que era desconhecido.

#704

Conjuntura.
Esconjura.
Urdidura.
Fartura.
Partitura.

28.8.18

#703

Dar o braço a torcer
pode causar fraturas.
(Decálogo de um teimoso)

Sombra

Em segunda mão
antes que vá ao osso
a demão gasta
no cordão ralo da angústia.
A variável independente
onde antes se tinham os nomes
por casas.
Anuncia-se o verso grado
e a boca serve-se do sal
como rima estimada em página
desembaraçada.

27.8.18

#702

O silêncio
que arde por dentro do corpo
e massacra a alma.

26.8.18

#701

Sob escolta do peito modesto
contra a penúria da audácia
o dialeto que não sabe dos remorsos. 

25.8.18

#700

À espera do outono
os arroios
agoniam na aridez excruciante
de seus caudais.

24.8.18

Estética

Na numeração dos encantos
não nos façamos rogados:
a estética
nunca fez mal a ninguém.
E nem os apoderados da dita
(ou que espalmam a sua existência
no fogaréu da estética 
– como se não houvesse um mundo lá fora)
e o seu proverbial nanismo,
afinal apenas risível
(e não irritante 
– que não temos idade para torvações),
servem para aplacar a proclamação.
Consagremos a atenção
aos lugares belos
às palavras belas
à música bela
aos belos sentimentos 
– e a toda a demais beleza
que haja para apreciar
e por apreciar.
Antes que a feiura seja irremediável
e a estética
contaminada seja
pela tenaz das espécies em vias de extinção.

#699

Socalcos em chão não abençoado:
arte de um viveiro 
de mãos ensanguentadas.