1.11.19

Descarnaval

Uma fatia maior,
ou o bolo quase todo,
autópsia de um ser sem cadáver
em miragens desfeito
para gáudio dos mastins que o mastigam
de boca mal-educadamente aberta. 
Os astros não dizem nada
(contrariando o outro,
o eternamente prometido cadáver político)
e a safra generosa contenta os artesãos. 
Há dias assim:
um sorriso não tímido
um abraço afetuoso
lauto jantar na mesa da boa companhia
a boa companhia
e um punhado de versos antes do deitar,
como fermento dos sonhos a contento.

31.10.19

In a manner of speaking

Podia dizer:
tumulto
– e ficar à espera da maré menor
nos despojos da tua fala.

Podia dizer:
embaraço
– e exultar com os braços desimpedidos
no fojo sem lobo à ilharga.

Podia dizer:
nome próprio 
– e arrumar o leito quente
no parapeito do sexo.

Podia dizer:
resgate
– e abraçar por perto
os corpos desatados da opressão.

Podia dizer:
deleite
– e nos olhos ávidos
fecundar a argúcia do desejo.

Podia dizer:
completude
– e do alto de mim
obliterar os precipícios medonhos.

Podia dizer:
sonho
– e no avesso dos sentidos
destravar a lava em frémito. 

#1245

Concurso de ideias,
sem rédea no tumulto das palavras
a embriaguez afoita. 

30.10.19

Fonte farta

Se ao sarcófago subtraíssemos
os gramas correspondentes à poeira
teríamos uma
punch line

(que soa sempre bem,
neste capítulo da modernidade,
debitar a erudição do idioma-franco).

Seríamos como os clássicos
gente absolutamente desempoeirada
mergulhada na contemplação
penhora 
das interrogações depois das interrogações

     (contra os boletins de previsões
     dos pastores que apascentam 
a modernidade que se pôs 
com a cumplicidade de um amanhecer 
poltrão).

Não dizemos “amanhã”
nem fazemos figas ao depois
que a estrutura interna da linguagem
é rigorosa
de um rigor absolutamente anárquico.

      (usurpando a matriz à gramática
      contra o estertor dos mendazes,
      os argonautas que guardam
      com o peso de sete chaves
      o penhor da linguagem em sua pureza 
 – ah, a pureza!) 

Também não dizemos
“se eu morrer”
por manifesta improbabilidade da hipótese.

#1244

Devolvo 
o verbo descarnado
ao patíbulo onde conspiram
os desdeuses.

29.10.19

Tomada de posse

Sob a contraluz
vejo o desenho da minha silhueta
um vulto disforme que se arrasta na parede.
Se soubesse de uma cortina
escondia-me atrás de outra
para não me ser revelado 
o negativo de silhueta:
parece que ensaia uma coreografia
disforme
sitiada pelas finas fronteiras do vulto
que se aloja na contraluz da minha silhueta.
Sinto algum pudor.
Já há muito
perdi a inocência das ilusões.
Não danço
para não ser credor da indulgência de outrem
e convenci-me que o melhor remédio
é disfarçar-me
com a silhueta desenhada 
sob o estirador da contraluz.

#1243

Sem medo da falésia
aprovo a matéria fecunda
e espero.

28.10.19

Trânsito em julgado

A levedura extática
navega
no curso improvável do devir.

Não é vassalagem.

Se soubesse dos desacatos
e de seu paradeiro
talvez me esforçasse por ser mediador
e aos bélicos estandartes retirasse chão.
A cavidade dos amargurados
não recebe a lua cã do luar alto
e às perguntas com arestas
responde-se com paciente meticulosidade.

A levedura não decai
no entardecer das espécies
e sem o contrabando das almas
não se prepara os telhados indulgentes. 

#1242

Esta terra 
dispensa adjetivos
tem um nome 
que é geometria de sobra.

#1241

[Variação do #908]

Se a guerra civil
é sobre civilidade
como será se for incivil?

27.10.19

#1240

Não me perguntem pelas regras
se não fui eu seu autor.

26.10.19

#1239

No abrasivo mosto do poder
não repousa o manto do saber.

25.10.19

Horário de inverno

A gola do gelo,
entre o outono apalavrado
e o refrigério da invernia
põe o pescoço de fora,
inventa-se no bálsamo da lareira. 
Desacerto os relógios
agora
que o dia começa e termina com noite. 
Os abrigos são muralhas com procura
que o enregelo não é suave. 
Da estação ainda da prometida
esperam-se trevas
ossos cingidos pelo frio algoz
um adiamento de quase tudo
até tudo ficar refeito
da implacável espada afiada da invernia. 
Desacerto os relógios
porque é efémero o inverno,
contra o sentido de meu voto.

#1238

Sou um dia de cada vez
e faço o dia à medida
do meu sentir.

#1237

This is the engineered will
the non-spontaneous cloth 
the mast that digs the marrow.

24.10.19

Paisagem protegida

A paisagem desfolhada
aplana o chão para os meus olhos
e tiro as medidas 
à paisagem que se vê, 
açucarada.
Os patamares escorregam
fazem-se frutos fartos 
sobranceiros ao vale
e ao rio imperial que os empareda.
Tomara 
a mão do Homem
fosse mais vezes
assim engenhosa,
o dorso cuidado de uma quimera.

#1236

Ensurdeço
com a altivez da noite funda
refém dos sonhos sem bússola.

23.10.19

Backstage

O nó cego
tem a mesma perspicuidade
que dizer-se
novo em folha.
Agradecem-se
as idiomáticas expressões
que as gentes contemplam em silêncio
acríticas
sem duvidarem
do fundo em que se hasteiam.
Se o nó é cego
não deixa nada à mostra
e não pode ser nó
como ser novo em folha
é desmentir a beleza
das outonais, caducas folhas.

#1235

Faço lei
da tábua rasa
e despedaço a insubmissão
em pedaços sem bandeira.

22.10.19

Equilíbrio

A força maior 
é não fugir da dor 
e ter nela o freio que a mitiga.
A força maior 
é não enjeitar as lágrimas 
e saber que nelas fecunda 
o mar auspicioso.
A força maior 
é trazer o hoje agarrado ao peito.

Sabática

Penso 
em tudo o que podia ser candidato
a uma sabática.
Coisas tão adoráveis
e que me causam repulsa.
Coisas excelsas
a exemplar moeda de troca
o cunho paradigmático dos modelares 
a confiança à prova de contratempos
as lições de boa moral 
enquistadas num compêndio
modismos
palavras proscritas
alfândegas inverosímeis
estatutos subliminarmente superiores
militares de todos os jeitos e feitios
comendas, oh, as comendas
e passinhos, pequeninos
e todas as demais palavras com diminutivo,
porque diminuem.
Penso
em tudo o que está a fugir
de uma sabática.
E lamento
o tanto que todas essas grandiosas coisas 
perdem
por perderem a sua 
profilática sabática.

#1234

Patrocino o instante
antes que o fósforo seja efémero 
e o instante venha delido no olvido.

21.10.19

Relógios

É este tiquetaque interminável
eletrocardiograma dos relógios
de todos os relógios
sobrepostos
entrando em surdina nos ouvidos
ecoando o tempo algoz
e o tiquetaque continua
incessante
teimosamente infecundo
que a cada eletrocardiograma dos relógios
sei que se esvai a andadura em que estou
e os relógios ensurdecem
como fossem conspiração com aval divino
(daí não poder acreditar em deus)
e o meu magma doesse
a cada percussão dos ponteiros dos relógios
em combinação de uma sinfonia interminável
contra os terapeutas alinhados 
em vozearia concorrente com a dos relógios.

Arrependo-me.

Não quero saber da mudez dos relógios
de todos os relógios
sobrepostos
antes de saber
que essa mudez
pressente
a minha própria mudez.

Arrependo-me.

Doravante
consagro o tiquetaque mundano
arbitral
mecanicamente rotineiro
carta registada com aviso de receção
sem data desenhada no calendário,
consagro o som melódico
de todos os relógios
em cada peça por si considerada
singular mote da combustão diária,
ou de todos os relógios, 
por junto,
sobrepostos.

#1233

Da manhã temperada por nevoeiro
dizia o pescador
ser pressentimento de dia 
com segredos escondidos na faina.

20.10.19

Da simplicidade erudita


https://www.youtube.com/watch?v=cPK2DQ0xtQQ

[The Durutti Column, concerto no Indústria, Porto, 30 de abril de 1988, trazido do baú via YouTube]

Aprendi
com a simplicidade dos sons
a partitura feita de paisagens sublimes
e estrofes austeras.

Aprendi
as palavras soletradas por uma guitarra.
E soube
que é dispensável
a implosão da complexidade
o estrénuo leito da erudição sem vagar
para aprender com os aprenderes modestos
como um caudal vasto 
onde se benzem as imagens sinceras.

Aprendi
que não precisamos
se não 
de um punhado de alma
para sermos almas maiores.

#1232

Negociamos a memória
com o pudor
das bocas silenciadas.

19.10.19

#1231

Sabia do mar encapelado
no abismo 
onde o ocaso se aninha.

18.10.19

Rugas

O que dizem as rugas:
pétalas não decadentes
a espuma retirada ao bocejo
a tirania do tempo enquistado,
senescente.

Das rugas retiram-se 
os poros exangues
manchados pelos vitrais intemporais
emaciados pela consagração de uma comenda
e, todavia, imperturbáveis.

O que dizem as rugas
não são cálculos impossíveis
ou palavras articuladas no avesso das bocas.

Dizem
o tanto que houver por dizer
e se em silêncio se mantêm
no restante do tempo
é porque se acham abrigadas 
em sigilos.

#1230

Não eram lantejoulas
o meu manjar. 
Era a luz desmaiada
o entardecer 
a teu lado.

17.10.19

#1229

A meio caminho
entre o apeadeiro e a lua baça
as mãos juntam a chuva ao rosto.