19.4.20

#1508

[Crónicas do vírus, LXXIV]

A nomenclatura da normalidade
espevita o povaréu.
(A destempo?)

18.4.20

#1507

[Crónicas do vírus, LXXIII]

Nem todos os terramotos
aparecem no sismógrafo.

O invasor sem rosto

O sangue
cortado ao meio.
Uma linha indivisa.
O radar à procura de sombras,
a maior das estultícias.
“Não te esqueças de viver”
a capa do livro
em forma de mnemónica
como se aos lúcidos
houvesse na camada do tempo
um esquecimento sobre o viver.
Os lustres desfilam 
num pano hasteado
contra o plano inclinado
e o esquecimento geral de tudo,
ou como se tudo se consome
no instante de um fósforo
sem paradeiro.
O caudal espera.
Espera pelo sangue
devolvido ao seu uníssono.

17.4.20

#1506

[Crónicas do vírus, LXXII]

Como podemos morrer na praia
(advertência de S. Marcelo)
se a praia está proibida?

Wake up call


https://www.youtube.com/watch?v=Fl3WtUrfEyo

[Johánn Johánnsson, “Good Night, Day”]

No esconderijo da noite
subi à véspera da lua
esperei 
enquanto era dia
enquanto o verbo não adormecia:
e disse
que podia ser o acontecido
sem que o seu avesso fosse maldição
ou as estrelas que despontavam
páginas à espera de escrita.
Não sabia do sortilégio da rua
e da varanda privilegiada
sabia ser testemunha de tudo
e do nada que de mim se açambarcava.
Valeu-me a modesta ambição,
ou diria,
a desambição assentada em luvas de esgrima
sem que dos penhores quisesse um módico
sem que nos lagos ensombrados
traduzisse as palavras apagadas.
Do esconderijo da noite
enquanto terçava o rosto contra o frio
contei as estrelas
uma a uma;
inventariei os demiúrgicos sentidos
no piano por estrear
com uma voz sibilina como palco
e os meus olhos
insuperáveis
contra a matilha 
do venal arrefecimento dos sentidos,
a anestesia incombustível
com a desistência pelo meio.
Angariei a resistência precisa
e de cais em cais
vi transfigurações das palavras
como elas deixavam de ser significante
e se entronizavam metáforas.
A mim trouxe o método impreciso
a pele gasta, 
mas à prova de rugas
e dos cabelos agrisalhados 
tirei a matriz das coisas 
que não hesitam em sua imensa beleza.

Evoquei as manhãs vagarosas
quando o corpo não sabia de fronteiras
e a lucidez ganhava no parapeito da demora.

E esperei.

#1506

[Crónicas do vírus, LXXII]

Como podemos morrer na praia
(advertência de S. Marcelo)
se a praia está proibida?

#1505

[Crónicas do vírus, LXXI]

Inventar milagres,
cortesia de S. Marcelo.

#1504

[Crónicas do vírus, LXX]

Não querem a morte da cura,
os velhos,
abraçando-se à morte da doença.

16.4.20

Moscovo

Vejo 
a cidade espartana
as pessoas indiferentes
o frio que fere
o silêncio dilacerante
a neve profícua
e vejo
a luminosidade que clareia a noite
os monumentos que exsudam exotismo
o frio que conserva
os vestígios da arquitetura imperial
a aventura da incomunicação.
Vejo
o despoder do avesso
as paredes que conservam 
sinais pretéritos
o paradoxal obnubilar do passado
com metamorfose no cânone hodierno.
Vejo
um lugar que se entranha,
seráfico. 

#1503

[Crónicas do vírus, LXIX]

Quando abril
foi constrição
à liberdade.

#1502

[Crónicas do vírus, LXVIII]

Reduzidos
à família
minimalista.

15.4.20

#1501

[Crónicas do vírus, LXVII]

Agora somos máscaras.
A beleza e a feiura
saíram de circulação.

Filantropia

Não me atirei ao penhor das coisas
que o amanhã estava em espera
e as vozes cavernosas 
pilotavam o pensamento.
Julgava uma certa forma de refém
o modelo precatado no sombrio palco;
mas era outra a constelação
onde ciciavam os parentes ricos da fortuna
os que levitavam numa auréola assídua
a mnemónica sem descanso
verso propositadamente inacabado.

Não era um abismo que amputava a fala.

As coisas modernas desenham-se
na sua frágil efemeridade:
esse é o seu segredo
o magnete sobre uma multidão constante.

Os arbustos agitados
perfilhavam o vento como discípulo dileto
encenando uma coreografia díspar
no santuário sem seguidores, 
de onde furtei às escondidas
a outra parte da alma em falta. 

#1500

[Crónicas do vírus, LXVI]

Estas estradas
não foram feitas
para este deserto de veículos.

14.4.20

#1499

Os males que vêm por bem:
agora
somos paradigma
epílogo homérico.

Antologia

Qual é a tua metáfora favorita?
Aquela 
do ar cheio de sol
que não deixa a pele constituir-se ruga.
Ou aquela
da ardósia militante 
que se insubordina contra a extinção
e esbraceja uma espada sem lâmina.
Podia, ainda,
avançar com a hipótese destoutra:
a parda noite
covil de vultos
refúgio das almas gentis
que hibernam durante a noite
e a deixam para os vultos errantes.

Não sei 
se tenho metáfora favorita.
E essa talvez seja
a minha metáfora favorita.

Deixa que diga
em abono da sinceridade
que clareio os olhos
(como se tomasse um colírio)
ao pressentir a nortada austera
e às ondas que descompõem o mar
junto a fúria das minhas mãos gastas.
Não sei se será admissível
ao concurso das metáforas
mas esta passa a ser 
a minha antologia.

E tu, 
já sabes os alinhavos 
da tua antologia?

Tenho de ir ao dicionário
E depois continuamos a conversa.
Prometo.
Em nome do dicionário.

#1498

[Crónicas do vírus, LXIV]

Princípio geral da imobilização.

#1497

[Crónicas do vírus, LXIII]

O sofá 
vale
ouro?

#1496

[Crónicas do vírus, LXII]

A ausência
elevada a regra.

#1495

[Crónicas do vírus, LXI]

Entre 
quem muito procura o saber
e os que não sabem o que não sabem.

13.4.20

As mãos suadas pelo passado

O inventário da lua
à luz do dia
tradução da alma amuralhada.
As cinzas não sobram
no planalto dos sonhos.
Prováveis peões em trovas alheias
oferecem-se na pior das generosidades:
a útil idiotia que os veste
não transige no harmónio da razão
(o que quer que seja a razão)
e o bazar dos inquisidores
não hesita na opressão.
O inventário da lua
arruma as teias armiladas
os coices amontoados
no poço do esquecimento
o tear com as cadeiras destroçadas
uma lágrima vestida no firmamento.
Não se luta
se não a favor da vontade.
O arquétipo sem omissão
entre duas mãos suadas pelo passado.

#1494

[Crónicas do vírus, LX]

O que é feito
dos vícios de rua?
(Meirinhos da moralidade 
vingados pela mão favorável 
da praga.)

#1493

[Crónicas do vírus, LIX]

Lá fora
uma tela baça,
a preto e branco.

12.4.20

Retórica

Conta
o que não é dito
na mesma medida
do que é dito?
E entre
o dito e o não dito
há intermediário,
exegeta capaz do sonho
a não banal escavação
das palavras intuídas?
Ou tanto faz
dar o dito pelo não dito?

#1492

[Crónicas do vírus, LVIII]

A higiene
tornou-se canónica.

#1491

[Crónicas do vírus, LVII]

A morte 
tem a última
palavra.

#1490

[Crónicas do vírus, LVI]

Jardim de Éden:
o despertador da natureza,
a avisar.

11.4.20

#1489

[Crónicas do vírus, LV]

Do exílio caseiro
ao PREC capilar.

Revisão da matéria dada

Do nada digo nunca
estaleiro da metamorfose
quando a alvorada semeia o dia.

A espada embaciada roça o rosto
e ao medo amiúde mostro
o mastro da indiferença.

Do nada,
digo nunca
material de reserva
no alfaiate das memórias.

Do nada digo,
nunca:
e provo o sal da safra 
em sílabas sardónicas
por saber que a solenidade 
é uma sombra dos sentidos açambarcados.

#1488

[Crónicas do vírus, LIV]

Desta vez
Jesus não ressuscita
ao terceiro dia.