19.5.20

#1576

[Crónicas do vírus, CXLII]

Têm sido batidos
recordes 
de paternalismo.

Intervalo

Antes que seja
intervalo
e eu
tocha à procura de sede
a adivinhar as vírgulas sentadas
e sobre o focinho do mundo
a semear a estouvada fala
o vaso sem rasuras.
Antes que comece
a segunda parte
e do sofá bojudo
comece a descafeinar o peito
diz-me
diz-me como se escreve
noite
diz-me como se escreve
boca (a tua)
para te dizer
em modesta réplica
que o contrabando não se pratica
como desporto favorito.
Antes que seja intervalo
e o tempo se esvazie
numa ruína que não se adivinha.

#1575

[Crónicas do vírus, CXLI]

Escola invadidas por mascarados.
Restaurantes minimalistas no mobiliário.
O medo e um módico de intrepidez.

18.5.20

#1574

[Crónicas do vírus, CXL]

Um lampejo de primavera.
Enchente. 
As casas 
foram feitas para dormir
(e pouco mais).

Veneráveis

Os veneráveis dialogam
na vetusta sebe da sabedoria.

(Há quem lhe chame
verborreia
com lastro gongórico 
a condizer.)

Não ouvem dissidentes,
imprecados por serem
apedeutas.
A luminosa efervescência golpeia
os parágrafos desarticulados.
A eles
tudo é autorizado:
para muitos,
o posto é antiguidade;

para os veneráveis
é a senatorial farpela que os cobre,
a ossatura de tanta admiração.

Não possam ter topete
os que deles saiam em discordância:
os veneráveis são veneráveis
não por acaso.
Estatutos indiscutíveis,
para selar a síntese.

Ouvimos a reprimenda a um canalha:
toma atenção,
meu estroina,
que aos veneráveis não há quem importune
pois terras todas não sobrevivem
se um escol de veneráveis
não figurar na vitrina dos notáveis.
E se notáveis são
a notoriedade exige genuflexão
e imperativa concordância.

A crítica
arruína o consenso.
Mate-se a crítica
e exilem-se os críticos.

(Não necessariamente por esta ordem.)

#1573


In https://www.jn.pt/nacional/marcelo-foi-de-mascara-e-calcoes-as-compras--12206170.html

[Crónicas do vírus, CXXXIX]

O que não perdoo ao vírus
(imagens dantescas):
um presidente da república em calções 
na fila do supermercado.

#1572

[Crónicas do vírus, CXXXVIII]

Do oito para o oitenta:
é a vez de sermos atirados
aos lobos.

17.5.20

#1571

[Crónicas do vírus, CXXXVII]

Ninguém sai da história
para ficar na História.

#1570

[Crónicas do vírus, CXXXVI]

Pelo espelho da tarde soalheira
dir-se-ia 
que mitómanas são as estatísticas.

#1569

[Crónicas do vírus, CXXXV]

Uns rudimentos de verão
e é como se tudo fosse
como dantes.

16.5.20

Pantagruel

A tiara turquesa
alíquota parte da alma benigna
sem o azedume dos amaros
nem a audácia dos vilipendiados:
artesão em todas as formas
do forno extrai o fumo aromático
e verte no preparado 
ditando o original para o compêndio
guardando o receituário do sortilégio.
“Nem que me pagassem 
um alqueire de ouro” 
– recadeia a instâncias de uns mercadores
não sendo olhos nem ouvidos
se não para o segredo conservado
no avesso das pálpebras.
As mãos,
seladas,
são testemunhas únicas.

#1568

[Crónicas do vírus, CXXXIV]

Princípio geral da máscara:
o indiligente escanhoar
deixou de ser escrutinado.

15.5.20

#1567

[Crónicas do vírus, CXXXIII]

Nas praias, 
à distância.
O que será feito
dos marialvas da sedução?

Mudo

A muda palavra
muda o sentido da frase.
É a vez de outra muda de roupa
antes que emudeça a voz rebelde
a impaciência tenha alvorada
e mude o lábio assestado contra o perjúrio.
Mudo me mantenho
que o silêncio fala pelo húmus
que em mim se não muda.
Mudo
antes que seja mudado
e da muda sextante de mim
sobre um nada,
o mudo intérprete lembrado 
para cobaia dos frívolos mastins.
Deixo-os aos seus miasmas
enquanto mudo a muda
e sem medo desembaraço a fala inteira.

#1566

[Crónicas do vírus, CXXXII]

Voltou
o tempo
dos milagres.

Portugal 2020

(Da série “poesia para beócios”)

Ninguém diga ser indiferente
a história de amor comovente
esta de ver o presidente
cortejado pelo intendente.

Pois Costa o maior da paróquia
em inesperado onanismo
expiou o tabu da hierarquia
e Marcelo retribuiu o repentismo.

Pela chancela da mão presidencial 
em apoteótico código telegráfico
teve o intendente espasmo torrencial.

Assim vamos no Portugal pornográfico
nesta infusão de união nacional
ó pobre 2020 seráfico.

14.5.20

O plumitivo calvo

O plumitivo
discorre
com pose de catedrático
comentando hodiernidade
do alto da cátedra
o infalível juízo.
Proclama:
dos sítios federais
a maior indigência
a estultícia exponencial.
Não sabe
o plumitivo
a diferença
entre árvore e floresta;
mais ajuda
para o entendimento do plumitivo:
não sabe
que uma instituição
não se confunde
com as pessoas 
seus momentâneos rostos
– a instituição 
resiste às pessoas

(mesmo quando as pessoas
a maltratam).

Para coroar 
o raciocínio
bolçado desde a mansarda
o plumitivo
sentencia
(e cito)
que é cenário
de arrepiar os cabelos.
Não é o caso do plumitivo
puritano calvo,
lucidez evaporada
ao ter o cocuruto
sido testemunha
da desmatação capilar.

#1565

[Crónicas do vírus, CXXXI]

Já 
desaprendemos
os beijos
e os passou-bem?

#1564

[Crónicas do vírus, CXXX]

Nada era novo,
às muitas perguntas
desertas de respostas. 

13.5.20

#1563

[Crónicas do vírus, CXXIX]

O senão dantes
se não
senão nenhum agora.

O fim dos deuses

Os deuses 
declararam-se inexistentes.

À porta do olimpo
dois aglomerados.
No primeiro
os circunstantes exigem
retratação
o arrependimento dos deuses
de forma 
a que o voltem a ser.
No segundo
os circunstantes povoam
a excitação
enfim provada a sua tese.

Os segundos
não intuíram o logro
de que foram presas:
festejam o fim das divindades
sabendo da sua preparatória existência
e da contradição não se libertam.

Os primeiros
vertem lágrimas de tristeza
e sabem que doravante
trocam de lugar 
com os circunstantes 
do outro lado da rua. 

#1562

[Crónicas do vírus, CXXVIII]

A hera
da cidadania
bubónica.

12.5.20

Lixívia

O dinheiro
não se pinta
navega no pião
em juros anciãos.

A mortalha
assenta ao iconoclasta
meão beduíno
de rios sem caudal.

A centelha
ferve no rebordo
sem sal avivado
no sargaço da manhã.

O rebelde
descuida o corpo
contumaz no teatro
com títulos desmaiados.

O prato 
explica os jardins
diante de pueris
eruditos sem trono.

O saneador
esconde o ostensivo 
lagar da purga
lavado em nostalgia.

O livreiro
escondido da clandestinidade
dispensa as vírgulas
fora do sítio.

A poesia
fervilhante memória futura
corrige a boca incapaz
devolve o mar sem baias.

#1561

[Crónicas do vírus, CXXVII]

Não se imagina
se não (com nostalgia)
a alvorada do passado.

#1560

[Crónicas do vírus, CXXVI]

Da lusitanidade
outra vez ínclita.
(Males que vêm por bem)

11.5.20

#1559

[Crónicas do vírus, CXXV]

Já alguém se lembrou
do boomerang?

Os gramas do medo

A pele puída abre o cofre
paira sobre o rosto corrompido
do devir à espera de vez.

A estola da vaidade 
cai sobre o pescoço emaciado
que exulta com o disfarce.

Pelo tear da janela
o beijo seráfico entra sem cautela
e o peito arde como tocha sem ignição.

Os puristas encenam a geada a destempo
coabitam na fortaleza decadente
à espera de divindades sussurradas.

Não é paga da vingança
a que oprime a geração fortuita
em meneios de dançarinas sem sorriso.

Os dados da contenda não saem a terreiro
teimam na contemplação do inerte
como se esperassem pelo dia sem fronha.

De todos os agarrados aos maternais saiotes
exultam com dentes de fora
como fagotes de orquestra flácida.

No espelho da alvorada
as lacerações perdem-se na frugalidade
hesitam entre o apetite do dia.

É um tudo que se perde no olvido
o tudo descolorido pela melancolia
as ações cotadas na bolsa da improficuidade.

#1558

[Crónicas do vírus, CXXIV]

Eis o nirvana
de aprendizes de tiranete
e da coorte de empenhados obedientes.

#1557

[Crónicas do vírus, CXXIII]

Tarefeiros do apocalipse
em comandita
com os sociólogos da novidade.

10.5.20

Avental

Pirómanos
sem saber
vultos amordaçados ao devir
sobem aos rostos 
à procura do dia.

Nem que todos os vulcões
latissem em protesto
e os fiordes amornassem
os párias seriam estetas
e as viúvas
senhoras de silêncios.

O cabo estreita-se sobre o mar
ermo
e as dádivas foram sonhos
uma praça vazia 
no meio do luar.