2.6.20

Distância

Não é muita a comoção
nem a rendição arregaça mangas
que do opúsculo achado no alfarrabista
devolvo a mim as palavras em olvido
pétalas sarcásticas que chovem na aridez
e denunciam os apetrechados mastins
da gongórica oração.

Não é muita a ilusão
nem a profusão de manhãs sem alecrim
que no teatro do olhar resgatado a um anão
transcendo os poemas em levitação
frutos oníricos que maduram na planície
e convocam os adestrados sacristãos
da protuberância irrisória.

Não é muita a mistificação
nem a calcificação arremata certezas
que na plateia destronada por teimosos
ideio os socalcos que desenham as almas
navios alinhados no horizonte mareado
e patrulhas dos faróis vigilantes
da folclórica persuasão.

#1602

A reaprendizagem
dos rituais.

1.6.20

A gravata do tempo

É quando apetece
dar uma gravata 
ao tempo
estrangulando-o civicamente
para que não seja embaraço 
– as vezes
em que à boca sobe
a sede do intemporal.

Também há tempos
em que apetece aliviar a jugular
libertando o tempo
da gravata que é seu ornato.

Quem disse
que o tempo
é uma medida objetiva?

#1601

[Crónicas do vírus, CLXXII]

Já não constam
do porvir
as miragens sem sede.

31.5.20

#1600

[Crónicas do vírus, CLXXI]

Os milagres
são 
efémeros.
(Ao que parece.)

Banha da cobra

Reservo uma constelação. 
É de um lugar assim exíguo
o templo para respirar
da pele que arquiva os esgares do mundo. 
Das mãos troveja um crepúsculo
que protesta contra a ciência vaga:
dizem
o saber é uma arca acessível
onde todos têm paradeiro;
não tenho por hermenêutica
ciência desta linhagem,
mais me parece um pardieiro.

#1599

[Crónicas do vírus, CLXX]

A pandemia inspira
música, contos
e poesia.
(Autorreferencial.)

30.5.20

Animália

(Sem ofensa aos glosados)

Nos dias de bondade
a indulgência apresenta-se ao serviço
a favor dos da fala de contrabando.

Ao perorarem
nem a meação das intenções
se extrai das suas falas.

Muito se leva destas falas
em aprendizagem:
é noviça a semiótica
e os bezerros 
o mais que conseguem
é um urro imberbe.

#1598

[Crónicas do vírus, CLXIX]

Regras
Regras
e mais regras.
Que disse 
que não havia vencedores?

29.5.20

Desvirtudes

Às vezes
apetece
            apneia
uma absolutaMENTE
verdade
            daquelas
                        com brinde.
Ou um filme
            apoteótico
                        contra
a MURAlha
            do fingimento
                                   alçado.
Ou então
            um sorvete
                        de melão
apimentado
            na tela fosca
                        da luxúria.
Na dúvida
            aposto
                        na carne.

#1597

[Crónicas do vírus, CLXIII]

É o tempo
das vozes embaciadas
atrás das máscaras.

#1596

[Crónicas do vírus, CLXII]

O precipício
foi precipitado
ou a prevenção
foi premiada?

28.5.20

Equação

Dou do pedestal
o ângulo aberto
verbo ocasional
em maresia tornada
visível.

Escolho o dia
na penhora da boca
dado à mão tua
castelo de sonhos
dourados.

Matriculo o nome
nas arcadas do rio
à mercê dos acasos
em estrofes sabiamente
costuradas.

Revejo o porvir
pela escotilha do desejo
na bússola do teu corpo
em marés insubmissas
irrazoáveis.

Dou da fala
a sílaba cantada
coloquial poema
no espartano papel
reservado.

Sou do rosto aveludado
a matriz do jogo sem preço
proverbial artesão
de ânforas para o vinho
ametista.

Escuto o rumorejo
o avesso da palavra ínsua
e destrono os pesadelos
à custa da medula
ímpar.

Dou de mim a lava
os braços sem cansaço
a loucura agrilhoada
em centos de páginas
esmaecidas.

Dou de ti este amplexo
o cabaz fecundo
um relógio sem rosto
aroma de sementeira
incansável.

#1595

[Crónicas do vírus, CLXI]

Em vez da desconfiança
a escada para a liberdade.

#1594

[Crónicas do vírus, CLX]

A distopia
não atestou
o apocalipse.

27.5.20

#1593

[Crónicas do vírus, CLIX]

O barómetro da (ainda) inatividade:
uma quarta-feira de praia
como se fosse domingo.

Epístola

Não.
Não tenho.
Não tenho a certeza.
Não tenho a certeza do meu.
Não tenho a certeza do meu percurso.
Do meu percurso sem certeza.
Percurso sem certeza.
Sem certeza.
Do meu.

#1592

[Crónicas do vírus, CLVIII]

Reféns de um presente suspenso
lambemos as arestas do passado.

26.5.20

Cavalares

Este é um cavalo de batalha
a representação gregária do ditado fundido
maré que dá cobertura
às imensas possibilidades
no terreiro onde se terçam as emboscadas.

Este é um cavalo de Troia
coisa específica dos peritos informáticos
agente conspirativo que se insinua
nos interstícios da fala acomodada.

Este é um puro sangue lusitano
para gáudio das namoradeiras
que se emprestam à volúpia.

(Que não seja evocado
o cavalo branco
por decência democrática.)

Este é o aroma a cavalo
modismo ecológico do banho ausente
que a água escasseia
e os odores naturais da epiderme
são tributo à natureza.

Este é o cavalo a que não se olha o dente
prodigalidade asceta
no teatro intemporal das oferendas
(e mandam os cânones da boa educação
que uma oferenda não se enjeite).

#1591

[Crónicas do vírus, CLVII]

Ao fim 
destes anos todos
uma aula em calções de banho.

#1590

[Crónicas do vírus, CLVI]

Agora
que a balsa é comum
as fronteiras
medem a loucura dos homens.

25.5.20

#1589

[Crónicas do vírus, CLV]

Quanto(a)s fadas do lar
se perderam
por excesso de uso? 

Sumário

A espada hasteada
súmula da viril fala
amontoada na gramática restante,
poderosamente destrutiva
amputando as maiêuticas propriedades
do verbo escorreito.
A História parece imprestável.
Não fruem, as suas lições.
Postule-se alternativo entendimento
para dos próceres se admitir
que são a antítese perfeito da sensatez.
Na paragem do metro
ouço um senhor vetusto a vociferar,
sozinho.
Acabou de estilizar a ideia
dos próceres serem pré-admitidos
depois de aprovarem 
a exigentes exames de História.

#1588

[Crónicas do vírus, CLIV]

Está provado:
a cidade não foi feita
para passar em câmara lenta. 

24.5.20

#1587

[Crónicas do vírus, CLIII]

É hora
de testar
os testes.

#1586

[Crónicas do vírus, CLII]

(Ou a Pandora
instruções para não abrir a caixa
deviam ter sido dadas.)

#1585

[Crónicas do vírus, CLI]

A Pandora
nunca deviam ter dado
uma caixa.

23.5.20

#1584

[Crónicas do vírus, CL]

O sobressalto
que locupleta pesadelos
mora sempre na casa do lado. 

Os tolos e os bolos

Do império das ilusões,
onde medram os iconoclastas do fingimento,
irradia o úbere que parece não ter fim. 
Não sabem os apóstatas 
que ludibriam a grelha das leituras,
que sem o trivial mandamento dos ardis,
sem a contínua miragem
que desfila na vertigem do descontentamento,
não derrotam o umbral da irrelevância. 
Dantes
enganavam-se tolos com bolos:
quase todos 
tinham uma cortina baça 
a travar o entendimento,
e suseranos demoravam-se 
na inércia dos demais. 
Hoje 
só mudou a espessura da cortina:
o teatro das ilusões acostuma-se,
vem à cena dentro de outra cena
mais geral,
numa intempérie 
disfarçada de interminável estio,
e suserano é quem, 
da empreitada de convencer os comuns
que um direito geral 
a uma constelação de direitos existe,
se saldar com distinção. 
Agora
é dever instruir os tolos que não são tolos
(um dever com serventia de um direito geral).
Fica mais fácil
enganá-los com bolos baldios.

#1583

[Crónicas do vírus, CXLIX]

Vultos asininos
ensaiam a anestesia
dos gatos assanhados.