19.6.20

Sobre a decadência

Espalhadas pelo chão

pétalas que são rugas

a tradução da bela decadência.

 

Como há quem deteste

o outono?

 

O chão atapetado

não mente aos comensais da estética:

um leve odor a perfume floral

sente-se em contágio

e as abelhas sabem-no

sapientes na demanda de doçura

povoando o bosque.

 

Como há quem tenha medo

das abelhas?

#1633

[Crónicas do vírus, CCIV]

 

O antigamente

nunca foi

tão perto.

18.6.20

Areia fina

O céu virado do avesso

coabita no verso venal:

 

sabemos das ruas viáveis,

emparedado o vociferar 

das ruínas campestres.

Sinais e sinais perseguem o dia

em vez das presas habituais

com a indulgência de uma trégua:

 

não se inventariam culpas

nem consolos tartamudeados

em fábulas surreais.

Não havia estrada pela frente:

 

os tempos esquálidos esvaíam-se

consumiam o oxigénio emprestado

e de dentro das casas

subíamos aos terraços

à espera do crepúsculo.

Não sejam dadas as mãos

ao tiranete destino:

 

antes uma música em penhor

o coreografar desajeitado do corpo

a poesia que não se quer treslida

e todos os lugares admitidos

à estância dos marmoreados reféns.

Ouve-se na música:

 

todos cometemos erros.

 

Antes fosse espartana mitologia

açambarcando a fragilidade dos Homens. 

#1632

[Crónicas do vírus, CCIII]

 

Chegou a vez

do estado de negação.

#1631

[Crónicas do vírus, CCII]

 

Uma máscara,

um colete à prova

de bala.

17.6.20

Sob vigilância

No sossego antigo,

paradeiro sabido de um apeadeiro,

estimo o inestimável

na sombra esquecida de um jacarandá. 

Untem-se-me os viscerais aromas

as pétalas já recessas

que decaem do jacarandá 

o vestibular acesso 

que prova a extinção 

da primavera às mãos do verão

insaciável. 

Nestas noites que se demoram

arranjo uma parede caiada

para ser depositária do mel incontido

que irrompe do meândrico labirinto interior

e sinto-me artesão na varanda do sonho. 

 

Não se pagam 

as juras que ninguém ouviu. 

 

Cristalizam as dúvidas 

à porta das interrogações

e medra a poeira que se deita

sobre a melancolia. 

Derrote-se a melancolia

a vírgula fora do sítio

trespasse na moldura do artesão

à espera de saber 

o nome do futuro.

#1630

[Crónicas do vírus, CCI]

 

Precipitação

tornou-se

verbo.

16.6.20

Trova em vésperas de verão

Dou de mim

esta trova arlequim

sem ser de Bensafrim

ou usar roupa carmim

nem dar ares de mastim.

 

De mim faço vate

embora a cor seja mate

e no cais a estrofe embate

sem ramagens por desmate

nem arestas como arte.

 

Doido em mim trago esboço

da palavra em remoço

mediania deitada ao poço

sem vírgulas nem caroço

nem lenços ao pescoço.

 

Diamante de mim se oferece

na vez que se não esquece

a cada palavra que amanhece

sem a crisálida que se entretece

nem o gongórico que aborrece.

 

Druida não será minha linhagem

labiríntica personagem

emaranhada na ausente camaradagem

sem ossatura para ser pajem

nem ser dado à arbitragem.

#1629

[Crónicas do vírus, CC]

 

Já para a alma gémea

(de sua excelência mor)

oásis continuamos

pese embora o desmentido

da capital do império.

#1628

[Crónicas do vírus, CXCIX]

 

Sua excelência

acordou para a vida

(depois da efabulação com milagres)

e anunciou com pompa

uma crise que vai morder 

sem piedade.

#1627

[Crónicas do vírus, CXCVIII]

 

Em tempos de pasto

de conspirativas teorias

calhou-me em vez 

a invenção de uma:

a conspiração a favor

de hábitos de higiene.

15.6.20

Estertor

Não se joguem as intenções

no coldre da roleta russa:

se o sortilégio for furtivo, 

em hibernação,

não se queira atirar ao desfado

a combinação das probabilidades.

 

Queria-se a ousadia dos loucos

dos impensáveis estetas do acaso

em erupções de boémia sem boémios,

a varinha sem condão

uma rede tresmalhada de anciãos

à procura de um prado em repouso.

 

À medida da velhice

em validade fora de prazo

à espera

à espera que seja 

o fim da espera 

– que seja exata a bala no coldre

e que a roleta 

tussa.

#1626

[Crónicas do vírus, CXCVII]

 

Contrariando a história

não temos vocação

para heróis.

#1625

[Crónicas do vírus, CXCVI]

 

Da teoria do milagre

à teoria dos heróis,

o roteiro de um logro.

14.6.20

#1624

[Crónicas do vírus, CXCV]

 

Ecoava dos oráculos

um “novo normal”;

os assimétricos pratos da balança 

em que a justiça se pesa

exibem um parto gorado.

13.6.20

#1623

[Crónicas do vírus, CXCIV]

 

Testamento

para memória futura:

os vindouros que não esquecem

das fronteiras revividas.

O olho em falso

O corsário

não se mede

pelo tamanho da pala

que lhe embacia o olho vago.

O corsário

tão pouco se aprende 

pela vacatura do olho:

a pala como embuste

pode embaciar

um olho pleno.

O corsário

tanto é corsário

com um olho vago

ou com os dois plenos.

#1622

[Crónicas do vírus, CXCIII]

 

Sua 

a sua face

na obscena frivolidade

da irrelevância do grave.

12.6.20

Cinco minutos

Os cinco minutos de luar

fogem da penumbra

em seu palco alvar.

Dir-se-ia:

esta 

é a primeira estância

aquela que recolhe

as preferências dos corpos estivais

e as sombras desmaiam

no intenso, garrido mostruário do sol.

Por isso

há cinco minutos em cada dia

e uma clepsidra urdida

nas árvores que se abrem

floridas

ao espanto dos literatos.

Há cinco minutos

esperava pelo seu acontecido.

Na companhia do luar

em seu epílogo.

#1621

[Crónicas do vírus, CXCII]

 

Não vá um acaso

tornar-se ocaso.

#1620

[Crónicas do vírus, CXCI]

 

Não há arraiais populares,

tamanha a desfeita antidemocrática.

11.6.20

Praça do Chile

Não sabia

que África podia ser

em Lisboa.

Às onze da noite

o calor estático

engana 

o equinócio das horas.

Não sabia

que as palavras

podiam escorrer,

suadas.

#1619

[Crónicas do vírus, CXC]

 

Os prazos de validade

deixaram de contar.

10.6.20

#1618

[Crónicas do vírus, CLXXXIX]

Já em desconto do tempo:
o milagre 
denunciado como ilusão estatística
(ou embuste não negligenciável).

O juro sem taxa

No esconderijo
onde somos cúmplices
ganhamos vagar ao tempo.
Os socalcos que se não gastam
no rumorejo da tarde seca
infundem a semântica avulsa
e sabemos
que no segregar dos verbos incensos
temos as mãos sufragadas.
Somos
já o sabemos
o que os amantes sabem ser.

#1617

[Crónicas do vírus, CLXXXVIII]

Os daninhos deões
disfarçados
de divindades deontológicas.

9.6.20

Os bons olhos

Ao que dizes
são bons 
os olhos que me veem.
Parto do pressuposto
da validade dos olhos

(até porque aspiro
a que seja de idêntica linhagem
o que os teus bons olhos veem).

Repito:
parto do pressuposto
da validade dos olhos:
afligia-me
ter no meu círculo
gente de má rês.

Porém, 
permite-me
um porém:
sem querer esconjurar
a reflexividade feérica 
que tens dos teus olhos
não sei

(também não sabes
a menos que te lo certifiquem
oculistas credenciados)

se não há miopia 
em teu pesar das circunstâncias.

Antes de prova em contrário
travo como bons os olhos teus;
mas, 
até prova em contrário,
podes garantir
que não são teus olhos
uma corruptela do que soíam ser?
É que te vejo 
ornamentado de lentes
quando dantes te sabia
isento do maximizador de dioptrias.

Não te apoquentes:
não é por se servirem de lentes
que os olhos 

(teus 
ou de outrem)

deixam de ser bons.
Era só eu 
a erradicar a monotonia
e a provocar um sobressalto 
na tua autoestima.

#1616

[Crónicas do vírus, CLXXXVII]

Mastermind da estética:
princípio geral da máscara
e os dentistas tinham falido.

#1615

[Crónicas do vírus, CLXXXVI]

Agora que acabou 
o milagre e o exemplo
fazemos de conta,
mestres da cosmética.

8.6.20

O prémio dos surdos

Dizias:
eu trago no avesso de mim
um tesouro da Mesopotâmia
o ouro esquecido em mortalhas
e num copo de uma bebida branca
arrefeço a intempérie.

E eu
não sabia o que dizer;
amadurecia o silêncio
(talvez o silêncio descobrisse
a palavra certa 
– mas, e por que era precisa 
a palavra certa?)
Convocatórias de demónios
eram em barda
vultos vaidosos povoando os deuses
miragens cultivadas em sementes de laboratório
um pisa papeis calcando um dedo distraído
e o deboche em surdina
denunciando os querubins sem açaime.
Não dizia nada
e contudo
as ideias atropelavam-se à boca de cena
caiando o silêncio 
com o fermento das palavras retesadas.

Dizias
nunca soube entender 
as margens arrematadas
os longínquos nevoeiros sem maresia
as estátuas disformes à porta da galeria
a gente despenhada no cofre da audácia
as fronhas das almofadas fora do lugar
como prova do sono.

Desarmado 
continuava desarmado
(ou não intuía
o significado das tuas palavras).
A tela era o epitome da claridade
e aos oximoros dizíamos 
nada
dizimados pelo contrabando das almas
atingidos pela trovoada da insensatez.