21.6.20

Meta-entendimento

De cada vez que havia penumbra

o mosto do medo tornava-se

a saliva da extinção. 

As cortinas eram muros ermos

ao mesmo tempo muralha e algema

insensato pedaço de verbo

nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia. 

Dizia alguém:

devias sentir o que eu sinto. 

Houvesse quem recordasse

ser um logro a demanda

por imperativo do princípio 

da intransferibilidade dos sentidos. 

Como pode alguém convocar

uma comiseração destas

a não ser na demência da dor 

que consome até os ossos?

Pode alguém conter a ideia

que as consumições se perfilham

com almas que se protestem generosas?

Os cânones são implicáveis, contudo:

a solidariedade é exigência

ainda que seja não mais

que um logro para libertar interiores dores

que mergulham 

os labirínticos corredores da alma

numa castração 

se não souberem peticionar

a piedade com as presas dos infortúnios. 

Ao que dizem

a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,

o teatro supremo 

em que todas as boas almas

são alistadas. 

A hipocrisia. 

A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos

uma pousada onde temos o rogo

das exonerações das más carnes 

que nos consomem. 

Saiba na melhor das fazendas,

a que desaproveita a densidade das interpelações,

que o logro seja meu

é que do fado inscrito no oráculo

esteja o alinhamento com o palco sem limites

onde se confecionam 

o princípio geral do fingimento.

#1636

[Crónicas do vírus, CCVII]

 

Às vezes

a marcha-atrás

é fraqueza.

Outras vezes,

vício.

#1635

[Crónicas do vírus, CCVI]

 

Acerca da cerca

por cerco 

por certo.

20.6.20

O respeito e etecetera e tal

Uma sondagem

ao império da mansuetude,

eloquente,

aviva 

o princípio geral do respeito,

Essa forca perene

o sândalo da casta

mitra dos figurões

a genuflexão imperativa.

Marx estava equivocado.

Não era a luta de classes

era 

o princípio geral do respeito

(e a menoridade interior 

pressuposta).

#1634

[Crónicas do vírus, CCV]

 

Um ponto

a favor das máscaras:

não há estados de espírito

à superfície.

19.6.20

Sobre a decadência

Espalhadas pelo chão

pétalas que são rugas

a tradução da bela decadência.

 

Como há quem deteste

o outono?

 

O chão atapetado

não mente aos comensais da estética:

um leve odor a perfume floral

sente-se em contágio

e as abelhas sabem-no

sapientes na demanda de doçura

povoando o bosque.

 

Como há quem tenha medo

das abelhas?

#1633

[Crónicas do vírus, CCIV]

 

O antigamente

nunca foi

tão perto.

18.6.20

Areia fina

O céu virado do avesso

coabita no verso venal:

 

sabemos das ruas viáveis,

emparedado o vociferar 

das ruínas campestres.

Sinais e sinais perseguem o dia

em vez das presas habituais

com a indulgência de uma trégua:

 

não se inventariam culpas

nem consolos tartamudeados

em fábulas surreais.

Não havia estrada pela frente:

 

os tempos esquálidos esvaíam-se

consumiam o oxigénio emprestado

e de dentro das casas

subíamos aos terraços

à espera do crepúsculo.

Não sejam dadas as mãos

ao tiranete destino:

 

antes uma música em penhor

o coreografar desajeitado do corpo

a poesia que não se quer treslida

e todos os lugares admitidos

à estância dos marmoreados reféns.

Ouve-se na música:

 

todos cometemos erros.

 

Antes fosse espartana mitologia

açambarcando a fragilidade dos Homens. 

#1632

[Crónicas do vírus, CCIII]

 

Chegou a vez

do estado de negação.

#1631

[Crónicas do vírus, CCII]

 

Uma máscara,

um colete à prova

de bala.

17.6.20

Sob vigilância

No sossego antigo,

paradeiro sabido de um apeadeiro,

estimo o inestimável

na sombra esquecida de um jacarandá. 

Untem-se-me os viscerais aromas

as pétalas já recessas

que decaem do jacarandá 

o vestibular acesso 

que prova a extinção 

da primavera às mãos do verão

insaciável. 

Nestas noites que se demoram

arranjo uma parede caiada

para ser depositária do mel incontido

que irrompe do meândrico labirinto interior

e sinto-me artesão na varanda do sonho. 

 

Não se pagam 

as juras que ninguém ouviu. 

 

Cristalizam as dúvidas 

à porta das interrogações

e medra a poeira que se deita

sobre a melancolia. 

Derrote-se a melancolia

a vírgula fora do sítio

trespasse na moldura do artesão

à espera de saber 

o nome do futuro.

#1630

[Crónicas do vírus, CCI]

 

Precipitação

tornou-se

verbo.

16.6.20

Trova em vésperas de verão

Dou de mim

esta trova arlequim

sem ser de Bensafrim

ou usar roupa carmim

nem dar ares de mastim.

 

De mim faço vate

embora a cor seja mate

e no cais a estrofe embate

sem ramagens por desmate

nem arestas como arte.

 

Doido em mim trago esboço

da palavra em remoço

mediania deitada ao poço

sem vírgulas nem caroço

nem lenços ao pescoço.

 

Diamante de mim se oferece

na vez que se não esquece

a cada palavra que amanhece

sem a crisálida que se entretece

nem o gongórico que aborrece.

 

Druida não será minha linhagem

labiríntica personagem

emaranhada na ausente camaradagem

sem ossatura para ser pajem

nem ser dado à arbitragem.

#1629

[Crónicas do vírus, CC]

 

Já para a alma gémea

(de sua excelência mor)

oásis continuamos

pese embora o desmentido

da capital do império.

#1628

[Crónicas do vírus, CXCIX]

 

Sua excelência

acordou para a vida

(depois da efabulação com milagres)

e anunciou com pompa

uma crise que vai morder 

sem piedade.

#1627

[Crónicas do vírus, CXCVIII]

 

Em tempos de pasto

de conspirativas teorias

calhou-me em vez 

a invenção de uma:

a conspiração a favor

de hábitos de higiene.

15.6.20

Estertor

Não se joguem as intenções

no coldre da roleta russa:

se o sortilégio for furtivo, 

em hibernação,

não se queira atirar ao desfado

a combinação das probabilidades.

 

Queria-se a ousadia dos loucos

dos impensáveis estetas do acaso

em erupções de boémia sem boémios,

a varinha sem condão

uma rede tresmalhada de anciãos

à procura de um prado em repouso.

 

À medida da velhice

em validade fora de prazo

à espera

à espera que seja 

o fim da espera 

– que seja exata a bala no coldre

e que a roleta 

tussa.

#1626

[Crónicas do vírus, CXCVII]

 

Contrariando a história

não temos vocação

para heróis.

#1625

[Crónicas do vírus, CXCVI]

 

Da teoria do milagre

à teoria dos heróis,

o roteiro de um logro.

14.6.20

#1624

[Crónicas do vírus, CXCV]

 

Ecoava dos oráculos

um “novo normal”;

os assimétricos pratos da balança 

em que a justiça se pesa

exibem um parto gorado.

13.6.20

#1623

[Crónicas do vírus, CXCIV]

 

Testamento

para memória futura:

os vindouros que não esquecem

das fronteiras revividas.

O olho em falso

O corsário

não se mede

pelo tamanho da pala

que lhe embacia o olho vago.

O corsário

tão pouco se aprende 

pela vacatura do olho:

a pala como embuste

pode embaciar

um olho pleno.

O corsário

tanto é corsário

com um olho vago

ou com os dois plenos.

#1622

[Crónicas do vírus, CXCIII]

 

Sua 

a sua face

na obscena frivolidade

da irrelevância do grave.

12.6.20

Cinco minutos

Os cinco minutos de luar

fogem da penumbra

em seu palco alvar.

Dir-se-ia:

esta 

é a primeira estância

aquela que recolhe

as preferências dos corpos estivais

e as sombras desmaiam

no intenso, garrido mostruário do sol.

Por isso

há cinco minutos em cada dia

e uma clepsidra urdida

nas árvores que se abrem

floridas

ao espanto dos literatos.

Há cinco minutos

esperava pelo seu acontecido.

Na companhia do luar

em seu epílogo.

#1621

[Crónicas do vírus, CXCII]

 

Não vá um acaso

tornar-se ocaso.

#1620

[Crónicas do vírus, CXCI]

 

Não há arraiais populares,

tamanha a desfeita antidemocrática.

11.6.20

Praça do Chile

Não sabia

que África podia ser

em Lisboa.

Às onze da noite

o calor estático

engana 

o equinócio das horas.

Não sabia

que as palavras

podiam escorrer,

suadas.

#1619

[Crónicas do vírus, CXC]

 

Os prazos de validade

deixaram de contar.

10.6.20

#1618

[Crónicas do vírus, CLXXXIX]

Já em desconto do tempo:
o milagre 
denunciado como ilusão estatística
(ou embuste não negligenciável).

O juro sem taxa

No esconderijo
onde somos cúmplices
ganhamos vagar ao tempo.
Os socalcos que se não gastam
no rumorejo da tarde seca
infundem a semântica avulsa
e sabemos
que no segregar dos verbos incensos
temos as mãos sufragadas.
Somos
já o sabemos
o que os amantes sabem ser.