1.12.20

Distopia

A próxima guerra

preso ao meu pé esquerdo

um sacrilégio

talvez

aposta cega 

no túmulo sem nome. 

 

Amanhecem as sombras tiranas

debruçam-se sobre o corpo

madraço

e em sua meação 

atordoam-no. 

 

A próxima guerra,

uma sem exércitos

nem artilharia,

não deixará a saliva intacta.

Metafísico

Deixaram-nos aqui

sozinhos

(desamparados)

mas temo-nos

uns aos outros.

#1819

[Crónicas do vírus, CCCXCI]

 

As vacinas.

Ou

o corte epistemológico

da peste.

30.11.20

#1818

[Crónicas do vírus, CCCXC]

 

A cortina

teimosamente vertida

às costas dos humanamente

frágeis.

29.11.20

#1817

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIX]

 

Trigonometria

da melancolia.

28.11.20

#1816

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]

 

A dissimulação

deixou de ser perseguida

pelos que pastoreiam

os bons costumes.

27.11.20

Niilismo

Não é 

a erma vindima

o magma furtivo

o emblema da ira

a seráfica encenação.

 

Não é

o adiamento provisório

as colcheias desamestradas

o vínculo sem furor

os degraus sem destino.

 

Não é

a compensação sem paradeiro

a eira banal

o verbo defenestrado

o rosto desfardado.

 

Não é

o tiro avulso

o penhor prometido

a pulsão meteórica

a justaposição de termos.

 

Não é

o não saber na casa

o não despojar o medo

o não fugir sem delação

o não arrumar as candeias gastas.

 

Não é

desaproveitar o ontem

reter a lágrima no peito

insultar o próprio nome

legar um nada cheio de tudo.

#1815

[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]

 

Tão bem lançados íamos

veio este freio luciferino

trazer o mosto do retrocesso.

26.11.20

Adivinha

Que papel regido

serve ao obstáculo penhor?

As juras avessam o lugar

em servis comendas

que não têm cabimento.

Às manhãs consentidas

devolve-se a argamassa

o solene filamento que atravessa

o sangue apurado.

Se ao menos

a chuva viesse temporã

e as matilhas não angariassem

o medo

a maré seria sementeira

da filigrana avivada nos dedos.

#1814

[Crónicas do vírus, CCCLXXXI]

 

Somos

uma errata 

em movimento.

25.11.20

Entrelinhas

O que sabemos

das entrelinhas:

os nós invisíveis

que azedam a boca

e nós,

seus possíveis hermeneutas,

um vesúvio inteiro

a aguardar por exploração. 

 

O que tiramos

das entrelinhas:

o mosto indecifrável

semântica partida nas vírgulas

como se fosse fratura exposta

e do osso se visse apenas

o gesso. 

 

O que devemos

às entrelinhas:

o cofre forte da alma

o penteado maiêutico da palavra

a recusa do lugar-comum

no lugar reinventado

onde reinventadas 

se lobrigam as palavras. 

 

Por dentro

das entrelinhas.  

#1813

[Crónicas do vírus, CCCLXXX]

 

Somos, talvez,

uma farsa

na meação de uma grandeza

estilhaçada. 

24.11.20

Fundo perdido

Afundo, 

perdido,

o fundo perdido

antes que,

no fundo,

perdido seja o fundo

nos fundilhos

de um outro qualquer.

 

O fundo pedido

somado à funda tutelar

fundeia na pedra perdida

sem fundo à vista

na perdição da avareza

no sem fundo do pedinte perdido.

 

O fundo

perdido

em fundo,

pano de fundo,

autópsia de um caso 

perdido.

 

Pois 

aos casos em perdição

amestra-se o fundo sem fundo

perdido em tangente 

com os de perdida linhagem.

#1812

[Crónicas do vírus, CCCLXXIX]

 

A promiscuidade,

abatida

por decreto.

#1811

Crónicas do vírus, CCCLXXVIII]

 

Ainda ninguém se lembrou

de chamar a estes tempos

silly season

23.11.20

Propositado

Acerca da polémica:

estava divinal

o vinho servido

e os preparos amesendados

assim como a companhia. 

Falou-se 

da imprevisibilidade

da contingência em auge

contra os epílogos sedutores

da arte reduzida a um escol

dos beneplácitos dos serventuários

e de como estes se tornam

invisíveis suseranos

(oh! virtudes do regime magnânimo). 

E sobre a polémica:

divagamos sob o peso da maresia

até que o ocaso abriu as pestanas

e sob as flores sentadas à mesa

fizemos um poema.

#1810

[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]

 

Na enseada da impaciência

onde se esgotaram

os sonhos de que perdemos memória.

22.11.20

#1809

[Crónicas do vírus, CCCLXXVI]

 

“Desta vez”

estamos convencidos

da nossa imensa fragilidade?

#1808

[Crónicas do vírus, CCCLXXV]

 

“Desta vez”

a conspiração

é-nos exterior?

#1807

[Crónicas do vírus, CCCLXXIV]

 

“Desta vez”

também fomos

os nossos carrascos?

21.11.20

#1806

[Crónicas do vírus, CCCLXXIII]

 

A quantas milhas estamos

da prescrição do bruxedo?

20.11.20

A demissão dos provérbios

Na charneca dos provérbios

mando calafetar o país

só para perceber

se consigo descolonizar

o lugar-comum.

No provérbio desalmado

extingue-se

a alma do dizedor

desfeita a um xis com valor de zero.

Falta saber

se no país dos provérbios

a alcatifa é medida bastante

para balbuciar os versos,

recanto existencial 

onde úbere tem provimento.

Na charneira entre duas fronteiras

abonado o inverosímil esteta

no esgotamento dos provérbios.

Até que sobre

a nova gramática

que dispensa bandeira a tiracolo.

#1805

[Crónicas do vírus, CCCLXXII]

 

(Desaprendizagem)

Deixámos

de saber fazer

com o que está

a acontecer?

19.11.20

Cruzes, credo!

Mandatário das privações

cozinhava em lume brando

a branda água do deserto

e sentia-se o coração do oásis

um feixe de luz 

nas entrelinhas da aridez.

 

Povoava as arestas insubmissas.

Talvez

um eufemismo para outra coisa

à falta de bravura para galvanizar o verbo

e fraturar o marasmo da pudicícia.

 

Afinal 

as privações eram pretexto.

Uma lança furtiva

na argamassa dos óbices

o contraditório do antagonismo

surfando

em velas arrevesadas que se estreitavam

contra o vento estrepitoso.

 

A vau

atravessava a intempérie

e dava-se o milagre

de entrar no cais e seca estar a roupa.

Falava-se de um entretenimento:

fingia-se,

fingia-se a rodos

e até o fingimento entrava na aura

do fingimento,

sobretudo aos domingos.

 

Que se desembaraçassem os lugares-comuns

os oitentas em metamorfose de oitos

a verbena ao luar a seguir à alvorada

o patine em letra morta

à espera de preenchimento dos espaços

a coisa iletrada enxertada ao balcão.

Que fujam para os japões

os funcionários diligentes

 

(que odeiam que lhes chamem

colaboradores)

 

e lá ensaquem, 

com a mestria dos puros,

a melancolia sem geografia a preceito.

 

Às vezes

o inventário começa 

nos limites que somos.

Imprevisível

o ocaso antecipa-se numa data

indeterminada.

 

De que adianta

assobiar para o ar

se o ar já está perdido?

#1804

[Crónicas do vírus, CCCLXXI]

 

A pedagogia do silêncio

como prevenção.

(E castração?) 

18.11.20

Jackpot

“Um jackpot”,

dizias.

 

Pelo meio

o nevoeiro assobiava

adiando a manhã

enquanto no banco do jardim

as esperas dançavam nos rostos

melancólicos.

 

Tu não esperavas:

teu era o amanhã

que nunca deixavas chegar a sê-lo.

“Se tivesse conta-quilómetros

andava sempre em excesso de velocidade”,

rasuravas as costuras do tempo poltrão

vertendo nele a tua bravura

um sentido próprio de boémia

que fazia do tempo uma raridade.

 

(Outros disso diriam

ser a extinção da lucidez.)

 

“Um jackpot”,

dizias:

e combinavas com os tutores do amanhã

a aposta de como o contarias,

amanhã,

ao ontem desapalavrado.

 

“Para mim

os minutos têm 

mesmo 

sessenta segundos”. 

#1803

[Crónicas do vírus, CCCLXX]

 

(Ergástulo das máscaras)

Somos

todos estranhos

uns para os outros.

#1802

[Crónicas do vírus, CCCLXIX]

 

De vacina em riste

antes que a poeira

seja nossa pele.

17.11.20

Folhas caducas

Azedou

o dia azedo

e no seu avesso

tirámos à sorte uma cor

a sintaxe da heurística manhã

derramando o verbo

cingindo o rosto

e no seu lugar

o peito pleno

amou.

#1801

[Crónicas do vírus, CCCLXVIII]

 

Quem imaginou

que o exílio

era em casa?