[Crónicas do vírus, CCCXCII]
Como sabemos
se o pai natal é fidedigno
com as barbas embaciadas
pela máscara?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCCXCII]
Como sabemos
se o pai natal é fidedigno
com as barbas embaciadas
pela máscara?
A próxima guerra
preso ao meu pé esquerdo
um sacrilégio
talvez
aposta cega
no túmulo sem nome.
Amanhecem as sombras tiranas
debruçam-se sobre o corpo
madraço
e em sua meação
atordoam-no.
A próxima guerra,
uma sem exércitos
nem artilharia,
não deixará a saliva intacta.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]
A dissimulação
deixou de ser perseguida
pelos que pastoreiam
os bons costumes.
Não é
a erma vindima
o magma furtivo
o emblema da ira
a seráfica encenação.
Não é
o adiamento provisório
as colcheias desamestradas
o vínculo sem furor
os degraus sem destino.
Não é
a compensação sem paradeiro
a eira banal
o verbo defenestrado
o rosto desfardado.
Não é
o tiro avulso
o penhor prometido
a pulsão meteórica
a justaposição de termos.
Não é
o não saber na casa
o não despojar o medo
o não fugir sem delação
o não arrumar as candeias gastas.
Não é
desaproveitar o ontem
reter a lágrima no peito
insultar o próprio nome
legar um nada cheio de tudo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]
Tão bem lançados íamos
veio este freio luciferino
trazer o mosto do retrocesso.
Que papel regido
serve ao obstáculo penhor?
As juras avessam o lugar
em servis comendas
que não têm cabimento.
Às manhãs consentidas
devolve-se a argamassa
o solene filamento que atravessa
o sangue apurado.
Se ao menos
a chuva viesse temporã
e as matilhas não angariassem
o medo
a maré seria sementeira
da filigrana avivada nos dedos.
O que sabemos
das entrelinhas:
os nós invisíveis
que azedam a boca
e nós,
seus possíveis hermeneutas,
um vesúvio inteiro
a aguardar por exploração.
O que tiramos
das entrelinhas:
o mosto indecifrável
semântica partida nas vírgulas
como se fosse fratura exposta
e do osso se visse apenas
o gesso.
O que devemos
às entrelinhas:
o cofre forte da alma
o penteado maiêutico da palavra
a recusa do lugar-comum
no lugar reinventado
onde reinventadas
se lobrigam as palavras.
Por dentro
das entrelinhas.
Afundo,
perdido,
o fundo perdido
antes que,
no fundo,
perdido seja o fundo
nos fundilhos
de um outro qualquer.
O fundo pedido
somado à funda tutelar
fundeia na pedra perdida
sem fundo à vista
na perdição da avareza
no sem fundo do pedinte perdido.
O fundo
perdido
em fundo,
pano de fundo,
autópsia de um caso
perdido.
Pois
aos casos em perdição
amestra-se o fundo sem fundo
perdido em tangente
com os de perdida linhagem.
Acerca da polémica:
estava divinal
o vinho servido
e os preparos amesendados
assim como a companhia.
Falou-se
da imprevisibilidade
da contingência em auge
contra os epílogos sedutores
da arte reduzida a um escol
dos beneplácitos dos serventuários
e de como estes se tornam
invisíveis suseranos
(oh! virtudes do regime magnânimo).
E sobre a polémica:
divagamos sob o peso da maresia
até que o ocaso abriu as pestanas
e sob as flores sentadas à mesa
fizemos um poema.
[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]
Na enseada da impaciência
onde se esgotaram
os sonhos de que perdemos memória.
Na charneca dos provérbios
mando calafetar o país
só para perceber
se consigo descolonizar
o lugar-comum.
No provérbio desalmado
extingue-se
a alma do dizedor
desfeita a um xis com valor de zero.
Falta saber
se no país dos provérbios
a alcatifa é medida bastante
para balbuciar os versos,
recanto existencial
onde úbere tem provimento.
Na charneira entre duas fronteiras
abonado o inverosímil esteta
no esgotamento dos provérbios.
Até que sobre
a nova gramática
que dispensa bandeira a tiracolo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXII]
(Desaprendizagem)
Deixámos
de saber fazer
com o que está
a acontecer?
Mandatário das privações
cozinhava em lume brando
a branda água do deserto
e sentia-se o coração do oásis
um feixe de luz
nas entrelinhas da aridez.
Povoava as arestas insubmissas.
Talvez
um eufemismo para outra coisa
à falta de bravura para galvanizar o verbo
e fraturar o marasmo da pudicícia.
Afinal
as privações eram pretexto.
Uma lança furtiva
na argamassa dos óbices
o contraditório do antagonismo
surfando
em velas arrevesadas que se estreitavam
contra o vento estrepitoso.
A vau
atravessava a intempérie
e dava-se o milagre
de entrar no cais e seca estar a roupa.
Falava-se de um entretenimento:
fingia-se,
fingia-se a rodos
e até o fingimento entrava na aura
do fingimento,
sobretudo aos domingos.
Que se desembaraçassem os lugares-comuns
os oitentas em metamorfose de oitos
a verbena ao luar a seguir à alvorada
o patine em letra morta
à espera de preenchimento dos espaços
a coisa iletrada enxertada ao balcão.
Que fujam para os japões
os funcionários diligentes
(que odeiam que lhes chamem
colaboradores)
e lá ensaquem,
com a mestria dos puros,
a melancolia sem geografia a preceito.
Às vezes
o inventário começa
nos limites que somos.
Imprevisível
o ocaso antecipa-se numa data
indeterminada.
De que adianta
assobiar para o ar
se o ar já está perdido?
“Um jackpot”,
dizias.
Pelo meio
o nevoeiro assobiava
adiando a manhã
enquanto no banco do jardim
as esperas dançavam nos rostos
melancólicos.
Tu não esperavas:
teu era o amanhã
que nunca deixavas chegar a sê-lo.
“Se tivesse conta-quilómetros
andava sempre em excesso de velocidade”,
rasuravas as costuras do tempo poltrão
vertendo nele a tua bravura
um sentido próprio de boémia
que fazia do tempo uma raridade.
(Outros disso diriam
ser a extinção da lucidez.)
“Um jackpot”,
dizias:
e combinavas com os tutores do amanhã
a aposta de como o contarias,
amanhã,
ao ontem desapalavrado.
“Para mim
os minutos têm
mesmo
sessenta segundos”.
Azedou
o dia azedo
e no seu avesso
tirámos à sorte uma cor
a sintaxe da heurística manhã
derramando o verbo
cingindo o rosto
e no seu lugar
o peito pleno
amou.