25.12.20

#1846

[Crónicas do vírus, CDXVIII]

 

Do cerco contumaz

reféns

(ainda) desarmados.

24.12.20

Psicologismo anti anti-natalício

O bolo-rei

tem má fama.

As rabanadas

têm má fama.

Os sonhos e as filhoses,

também têm má fama.

As famílias

que são os seus próprios anticorpos

têm má fama.

A febre do consumo

que desmede afetos

ou prova favores

tem má fama.

O beatismo da época

tem má fama.

As juras de metamorfose

(apalavradas na ressaca da época)

têm má fama.

As árvores ornamentadas

têm má fama.

As ruas iluminadas

têm má fama.

O natal

não tem culpa nenhuma.

#1845

[Crónicas do vírus, CDXVII]

 

Atirados

para a clareira

no banho coletivo

de salvação.

23.12.20

Open space

Havia um número

(escondido)

que tinha o rosto

da tolerância.

Mantive-o em segredo 

 

– e não foi por gula

ou egoístico bem-perder:

 

queria que esse número

fosse da minha lavra

sem o avesso da linguagem cifrada

nem a pretensão desilustre 

dos marçanos sem roda.

Um número,

privativo:

diamante desencontrado

na floresta de números

nem primo nem esteta

nem estulto nem primacial.

Só um número anunciado,

mas sem revelação,

espaço sem limites

dicionário à espera de apeadeiro;

sangue que se encontra

por dentro de mim.

#1844

[Crónicas do vírus, CDXVI]

 

Começa a parecer

o jogo da cabra cega.

22.12.20

Prisão

Pagaste por todos os crimes;

e quanto pagaste?

Seriam os soldos avençados

Em privação do sol desimpedido

paga suficiente

para tão corrosivos labéus?

 

Em tua defesa:

a mirifica idade meandra 

bálsamo para a estroinice

o lagar onde fermentava

a loucura imanente.

 

Foras servil

da tua própria crueldade.

 

Lá fora

os de memória acesa

protestavam:

nem todas as prisões chegam

para a paga de que és devedor.

 

Aceitaste.

De ti

ninguém saberia o som

do rogo de comiseração.

 

Sabias

melhor do que ninguém

que o caudal de crueldades

e o teu incorrigível orgulho interior

empatavam a súplica.

#1843

[Crónicas do vírus, CDXV]

 

Só falta

o legislador

decretar-nos 

corpos forasteiros. 

21.12.20

Age retarding

Era com o bolor

das contracapas:

o vigor dissolvido

no apogeu do a.a.

(antes do amarelecimento)

enquanto esperava

por decadência maior.

A lombada podia

disfarçar;

por dentro

embainhado o gasto

e os ossos doídos

no sarau da fadiga diuturna,

devolvia-me ao nada.

Isto das salgas

onde se desconta o tempo

devia ser um conto:

Nnarrativa meã

ou um disfarce

atirado ao rosto

da senescência,

tão cheia de audácia.

#1842

[Crónicas do vírus, CDXIV]

 

Em cima dos nossos destroços

um cimento por reinventar?

#1841

[Crónicas do vírus, CDXIII]

 

A metamorfose da peste

a desafiar

o nosso atrevimento.

20.12.20

Ode aos medíocres

Não sejam modestos

os medíocres.

O seu lampejo

é a sindérese da poluição

o opulento arroto

que maltrata uma estrofe.

Mas que continuem,

fulgurantes,

a ser espécie protegida:

que seria dos pontos cardeais

se a antítese fosse dissolvida?

#1840

[Crónicas do vírus, CDXII]

 

O rastilho

para sermos

de uma natureza diferente?

19.12.20

#1839

[Crónicas do vírus, CDXI]

 

As vacinas,

para tingir

a esperança.

#1838

[Crónicas do vírus, CDX]

 

Um calafrio

torpedeia o adquirido:

já não se pode confiar

no natural.

18.12.20

O futuro devorado pelo passado

Nadamos no desterro

à altura mais rasa

do que se pode conceber. 

As colheres dançam

nos filhos das cortinas

e vê-se

que do encardido que levam

as cortinas estão atrasadas

para a lavandaria. 

Por vezes

do areópago mais elevado

sentencia-se:

“como é possível ter aquelas ideias?”

E eu,

que no segredo do meu íntimo

desterro tão atávicas ideias,

apetece-me

(se caísse no logro dos pesporrentes

e como eles fosse tão pesporrente)

destinar 

também ao desterro

a intolerância dos intolerantes

com os intolerantes. 

#1837

[Crónicas do vírus, CDIX]

 

Proibiram a passagem de ano:

eis os termos definitivos

da conspiração contra os boémios.

#1836

[Crónicas do vírus, CDVIII]

 

Proibiram a passagem de ano.

Há quem queira 

estender a validade

do ano pestífero.

17.12.20

Caravela

Seria caravela

nos confins

da desmemória.

Leve no gesto

dançando 

na rima da água.

Seria caravela

fantasma insentido

à procura de paradeiro.

Ágil a terçar o vento

pressentindo

o corpo futuro.

#1835

[Crónicas do vírus, CDVII]

 

Quando saberemos

da morada das tréguas?

16.12.20

Lugar-comum

Pressinto

o lago onde se banha

a coragem.

Os tenentes molham-se

ávidos

certos da produção 

de uma quimera.

Não intuem a farsa:

um lago

é composto

apenas

por água.

#1834

[Crónicas do vírus, CDVI]

 

Deixámos

de saber

dos corpos 

outros.

15.12.20

Intempestivo

Atraso o relógio

trespassado pela ilusão

só para apanhar a Perseide fulgurante

que nem parou no apeadeiro.

Atraso o relógio

conjurado pelo fingimento

só para embarcar nos braços do vento

que já encomendou o adeus.

Atraso o relógio

embotado pela errância

só para engastar o filão do passado

que foi vertido numa elegia.

#1833

[Crónicas do vírus, CDV]

 

Aprisionados

numa noite imorredoira

e nós,

atores do pesadelo encenado.

14.12.20

Traviata

Trago a candeia ao peito

oh!

fazenda minha em vez de sangue

sem sombra da quimera suplicada

apenas o desterro

onde parece que já não sou

onde perecem os fantasmas aviltados.

Cubro com os olhos,

sentinela da noite fugitiva,

as flores adormecidas.

Espero.

Espero que seja madrugada

e os olhos desembaciem a manhã

e aos teus pés me despoje

em toda a nudez impura

réu de um luar qualquer

à espera

à espera da tua mão

e de um lugar.

Vejo um piano

sozinho.

Um piano

à espera de mãos

e eu que trago uma candeia ao peito

condenado ao silêncio

sussurro a música que não sei compor.

Pois no desterro

só há a mudez das montanhas frias

o penhor dos medos desimpedidos

os terríveis monstros que encarvoam o mar.

Mas o piano 

espera pelo luar 

em forma de sortilégio

e espera 

por umas mãos sem corpo

as pétalas

desassombram as puras notas musicais

até que tudo seja 

a síntese da música

nas esperas alinhavadas pela manhã boreal

e ao pequeno-almoço

as madressilvas perfumem o quarto.

Voz a voz

o murmúrio

com a lucidez dos olhos falantes.

Empenho tudo:

não quero nada

a não ser a nudez de mim

escondida

a não ser de ti.

#1832

[Crónicas do vírus, CDIV]

 

Sinto falta

de bocas e narizes

(pese embora

o precípuo da fealdade).

13.12.20

Onda

Deviam fazer

o mapa das mentiras

e depois atirá-lo

às águas mudas do oceano.

 

Deviam esconder

o salitre embutido no cais

e depois guardá-lo

na varanda das verdades.

#1831

[Crónicas do vírus, CDIII]

 

O futuro

não é aquilo

que queremos que seja.

12.12.20

Obra feita

Obra feita,

dizia

enquanto o rosto

se tingia de vaidade.

 

Ninguém

era capaz de inventariar a obra

e de nela traduzir

utilidade.

 

Obra feita,

dizia,

mas apenas nas suas

elucubrações.

#1830

[Crónicas do vírus, CDII]

 

O esquecimento

deste ano

não cairá 

no esquecimento.

11.12.20

Faqueiro

Não compro

o remorso

a navalha arestada

desembaraça o abismo

clientelar.

 

Não adorno

a epiderme

o magma circunstancial

devolve a água

ecuménica.

 

Não desconfio

do estuário

o desencontro pueril

encomenda a estrofe

promitente.

 

Não sublinho

o estudante

a profecia órfã

confirma a impureza

fortuita.