[Crónicas do vírus, CDXVIII]
Do cerco contumaz
reféns
(ainda) desarmados.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O bolo-rei
tem má fama.
As rabanadas
têm má fama.
Os sonhos e as filhoses,
também têm má fama.
As famílias
que são os seus próprios anticorpos
têm má fama.
A febre do consumo
que desmede afetos
ou prova favores
tem má fama.
O beatismo da época
tem má fama.
As juras de metamorfose
(apalavradas na ressaca da época)
têm má fama.
As árvores ornamentadas
têm má fama.
As ruas iluminadas
têm má fama.
O natal
não tem culpa nenhuma.
Havia um número
(escondido)
que tinha o rosto
da tolerância.
Mantive-o em segredo
– e não foi por gula
ou egoístico bem-perder:
queria que esse número
fosse da minha lavra
sem o avesso da linguagem cifrada
nem a pretensão desilustre
dos marçanos sem roda.
Um número,
privativo:
diamante desencontrado
na floresta de números
nem primo nem esteta
nem estulto nem primacial.
Só um número anunciado,
mas sem revelação,
espaço sem limites
dicionário à espera de apeadeiro;
sangue que se encontra
por dentro de mim.
Pagaste por todos os crimes;
e quanto pagaste?
Seriam os soldos avençados
Em privação do sol desimpedido
paga suficiente
para tão corrosivos labéus?
Em tua defesa:
a mirifica idade meandra
bálsamo para a estroinice
o lagar onde fermentava
a loucura imanente.
Foras servil
da tua própria crueldade.
Lá fora
os de memória acesa
protestavam:
nem todas as prisões chegam
para a paga de que és devedor.
Aceitaste.
De ti
ninguém saberia o som
do rogo de comiseração.
Sabias
melhor do que ninguém
que o caudal de crueldades
e o teu incorrigível orgulho interior
empatavam a súplica.
Era com o bolor
das contracapas:
o vigor dissolvido
no apogeu do a.a.
(antes do amarelecimento)
enquanto esperava
por decadência maior.
A lombada podia
disfarçar;
por dentro
embainhado o gasto
e os ossos doídos
no sarau da fadiga diuturna,
devolvia-me ao nada.
Isto das salgas
onde se desconta o tempo
devia ser um conto:
Nnarrativa meã
ou um disfarce
atirado ao rosto
da senescência,
tão cheia de audácia.
Não sejam modestos
os medíocres.
O seu lampejo
é a sindérese da poluição
o opulento arroto
que maltrata uma estrofe.
Mas que continuem,
fulgurantes,
a ser espécie protegida:
que seria dos pontos cardeais
se a antítese fosse dissolvida?
Nadamos no desterro
à altura mais rasa
do que se pode conceber.
As colheres dançam
nos filhos das cortinas
e vê-se
que do encardido que levam
as cortinas estão atrasadas
para a lavandaria.
Por vezes
do areópago mais elevado
sentencia-se:
“como é possível ter aquelas ideias?”
E eu,
que no segredo do meu íntimo
desterro tão atávicas ideias,
apetece-me
(se caísse no logro dos pesporrentes
e como eles fosse tão pesporrente)
destinar
também ao desterro
a intolerância dos intolerantes
com os intolerantes.
[Crónicas do vírus, CDIX]
Proibiram a passagem de ano:
eis os termos definitivos
da conspiração contra os boémios.
[Crónicas do vírus, CDVIII]
Proibiram a passagem de ano.
Há quem queira
estender a validade
do ano pestífero.
Pressinto
o lago onde se banha
a coragem.
Os tenentes molham-se
ávidos
certos da produção
de uma quimera.
Não intuem a farsa:
um lago
é composto
apenas
por água.
Atraso o relógio
trespassado pela ilusão
só para apanhar a Perseide fulgurante
que nem parou no apeadeiro.
Atraso o relógio
conjurado pelo fingimento
só para embarcar nos braços do vento
que já encomendou o adeus.
Atraso o relógio
embotado pela errância
só para engastar o filão do passado
que foi vertido numa elegia.
Trago a candeia ao peito
oh!
fazenda minha em vez de sangue
sem sombra da quimera suplicada
apenas o desterro
onde parece que já não sou
onde perecem os fantasmas aviltados.
Cubro com os olhos,
sentinela da noite fugitiva,
as flores adormecidas.
Espero.
Espero que seja madrugada
e os olhos desembaciem a manhã
e aos teus pés me despoje
em toda a nudez impura
réu de um luar qualquer
à espera
à espera da tua mão
e de um lugar.
Vejo um piano
sozinho.
Um piano
à espera de mãos
e eu que trago uma candeia ao peito
condenado ao silêncio
sussurro a música que não sei compor.
Pois no desterro
só há a mudez das montanhas frias
o penhor dos medos desimpedidos
os terríveis monstros que encarvoam o mar.
Mas o piano
espera pelo luar
em forma de sortilégio
e espera
por umas mãos sem corpo
as pétalas
desassombram as puras notas musicais
até que tudo seja
a síntese da música
nas esperas alinhavadas pela manhã boreal
e ao pequeno-almoço
as madressilvas perfumem o quarto.
Voz a voz
o murmúrio
com a lucidez dos olhos falantes.
Empenho tudo:
não quero nada
a não ser a nudez de mim
escondida
a não ser de ti.
Obra feita,
dizia
enquanto o rosto
se tingia de vaidade.
Ninguém
era capaz de inventariar a obra
e de nela traduzir
utilidade.
Obra feita,
dizia,
mas apenas nas suas
elucubrações.
Não compro
o remorso
a navalha arestada
desembaraça o abismo
clientelar.
Não adorno
a epiderme
o magma circunstancial
devolve a água
ecuménica.
Não desconfio
do estuário
o desencontro pueril
encomenda a estrofe
promitente.
Não sublinho
o estudante
a profecia órfã
confirma a impureza
fortuita.