Quem de nós
já não partilhou rua
com um tomador de vidas?
Quem de nós
ainda não tornou nua
a vontade de matar?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Os ossos gastos
conspiram a rebelião.
Dentro de um lago baço
inventam as palavras ruínas
tornam-se fluentes no verbo gasto.
As lâminas de um fogo inesperado
ajudam as rimas:
não são os trunfos na mão
que ajeitam o tabuleiro;
em vez das cores de cor
a boca estatística desgasta a estultícia
e conserva de cor as baias das cores.
Amanhã
reservo o desmedo
antes que seja cedo.
Não sei dos números em barda
os que falam em vez do silêncio
em ondas sem cessar
que ajeitam o dia.
Não combino farsas
com os circenses que se pavoneiam
deixo para depois as cortinas com enfeites
e parto do cais para chegar a casa.
Não abandono as ideias sem patrono
nem deixo que sejam órfãs
as palavras arrancadas aos escândalos.
Não fujo do âmbar das palavras
nem que um cerco sem remédio
tome conta do peito.
Aos sinos sem fala
não conto o desenho do amanhã.
Prefiro que sejam os instantes
a caiar as paredes vetustas.
A cabeça em água
não pode ser se não um louvor.
Se a água é o elemento dominante
da Terra
uma cabeça feita em água
é o panegírico da moderna ecologia.
Todavia
as pessoas queixam-se
das cefaleias que liquefazem a cabeça
dos tremores que condensam a angústia.
Se pudessem,
carregavam barragens na nuca
só para abrirem as comportas
e a água desabitar as suas cabeças.
Ah!
se ao menos soubessem
que uma cabeça cheia de água
é uma fronteira que se fecha
ao vento que dela se apodera.
Um bom tema de conversa:
há quem demande o santo Graal
como se tudo fosse contingente
e um bastão ingente,
a qualidade,
adejasse como sentença definitiva.
Não sabem
os que precisam de ser desenganados,
que a fala dispensa adjetivos.
Sou
velocidade de cruzeiro
um meteorito despenhado no futuro
o osso duro que não se adia
regimento sem artilharia
ingrediente raro sem paradeiro
o estuque que disfarça a muralha arcaica.
Sou
o barítono do lugar omisso
a tisana oferecida aos reféns sem preço
pacífica aspiração
rebelde industriado pela vontade sem cortina.
Sou
o olhar sufragado
mãos que se entrelaçam nas sombras
a cobiça desautorizada por vozes apagadas
o espartano delator de ninguém.
Sou
uma medida sem medida
ponte pênsil segura por presilhas
negação da numismática
e no entanto colecionador de toponímia.
Sou
o silvestre artesão que determina as mãos
no mais impuro segredo entre os ímpares.
Sou
o desafio à vertigem do tempo
rebelde sem causas
mentor de almas por tresmalhar
descompanhia recomendável
no parapeito da angústia sem remédio.
Povoamos o sangue com o resto da noite.
Deixamos que os olhos não sejam baços.
O vento tortura a rua
enquanto bebemos o suor dançado
nos parágrafos que se escondem do amanhã.
As vozes amontoam-se nas paredes.
Fintam os verbos inválidos
e são elas próprias o arvoredo da primavera
o fértil chão onde nos deitamos para saber da pele.
Diremos que o medo não se compõe
na porta aberta às marés vivas
e que do centenário dicionário
colhemos as vésperas destinadas.
Açambarcamos os rios:
damos o nosso suor às suas águas.
Vemos no caudal paladino os punhos que escrevem
e sabemos
que nas veias voam palavras debruadas a mar.
Se soubéssemos dos oráculos
não queríamos o estojo dos druidas:
seríamos nós,
suficiente matéria arrumada num cofre,
prestamistas dos ultimatos sem assinatura
razão máxima da desrazão.
Se os prolegómenos se adiam no ciciar da tempestade
deixamos que os trunfos se arrastem na orla
e de um ermo lugar depomos o vazio.
Não há trovoada que nos derrote
nem noite parecida com um labirinto sem nome.
A matéria está dada.
O compêndio desaperta-se do medo
e o medo não se enquista:
fica em nós a medula pura
e sem adiamento cruzamos as latitudes
à espera dos lugares ensinados nos sonhos.
Até que os sonhos percam paradeiro
E subam pelos nossos corpos matriciais.
Deixamos a meação do património
que o território é ingreme
e o peito quer estrofes
que da fala sejam
procuradoras.
Janeiro
todo lampeiro
fevereiro
à espera do carpinteiro
março
mais forte do que o abraço
abril
convenientemente primaveril
maio
todo catraio
junho
com o meu cunho
julho
desfeito o esbulho
agosto
poltrão aposto
setembro
que não lembro
outubro
com o sonho cubro
novembro
sem demora o escombro
e dezembro
com janeiro já pelo ombro.
O molde puído
esconde a verdade da pele.
Não se atira fogo ao lago
nem a trovoada se encanta
por sereias fantasmas;
no fogaréu alinhado
as vozes entontecem-se no mito banal.
Não são as janelas que deixaram de abrir:
é o desmodo de viver
o planalto onde se semeia a aridez
a grotesca exibição dos excendentários
a fábrica de transações a descoberto
onde os alpinistas sem escrúpulos
sobem na medida da descida.
A verdade da pele
arranjada sob o disfarce das cicatrizes
estilhaça o molde puído.
[Crónicas do vírus, DLXXII]
A excitação
antes de tempo
– ou a cobiça do futuro
se cumprir
antes de o ser.
Cabeça em água.
Cabeça
na água.
Cabeça.
sem água.
Água.
Sem cabeça.
Ou:
água
na cabeça.
Água
(que) encabeça.
Me versus myself
a mouthless sword
dying to dare
at the doorsteps of the void.
Me against myself
on the verge of defeat
a woe made of a stiff leash
thriving
(who dares to know?)
the breath of success.
Me or myself
or else
the flipside of mourning
against shaded tears
jawing the tree into de knees
of the dawn.
[Crónicas do vírus, DLXX]
Recolhemos
os fragmentos perdidos
nas ruínas da peste
sem vontade de sermos
o mesmo filão.