13.9.21

#2138

[Crónicas do vírus, DCCX]

 

A verosimilhança do riso

nos rostos desalfandegados.

12.9.21

#2137

[Crónicas do vírus, DCCIX]

 

O dia

em que deixamos de ser

seres açaimados.

11.9.21

#2136

[Crónicas do vírus, DCCVIII]

 

Legados da peste (27):

vestimos,

enfim,

o sabre da modéstia.

10.9.21

Serão

Há um mosto sem paga

o ramal vindicado à candeia vigente

no dorso da manhã imprevista. 

Há um penhor amarrotado

na cordilheira arrematada em promessa

e de mim é o leilão

onde se inventaria o outono.

#2135

[Crónicas do vírus, DCCVII]

 

Legados da peste (26):

uma matemática

cheia de vírgulas,

o algoritmo da incerteza.

9.9.21

Em câmara muito lenta

Sobre a manhã contrariada

uma causa perdida. 

Uma luta

contra as palavras assintomáticas

as boas rebeldes presas a uma véspera. 

O corpo não responde,

prolonga o torpor 

herdado de pesadelos sem remoço. 

Digo que não há começo

para apaziguar com o impassível recomeço. 

O dia não será fugitivo. 

Espero 

em espera diligente

que mude a maré

enquanto muda insiste

a voz. 

#2134

[Crónicas do vírus, DCCVI]

 

Legados da peste (25):

a voz emudecida,

ou apenas emaciada.

8.9.21

Maledicências

Dizem

que da antropológica pequenez

vicejam deuses,

duendes que nos amesquinham

no nanismo terminal. 

Dizem

talvez por ser costume 

dizer quando melhor seria

calar.

Pois se do fundo fado

não somos feudo

não será por metafísicas poses

que seremos desmedo.

#2133

[Crónicas do vírus, DCCV]

 

Legados da peste (24):

as promessas

deixaram de ser

páginas de um sonho.

7.9.21

Misantropia militante

O bramido

idioma da multidão

cala as vozes únicas

que a discordância se afoga

na estrénua vociferação. 

 

As vozes únicas

átomos perdidos

perdem o direito a serem voz

a menos 

que recheiem o caudal tumultuoso

do bramido tonitruante. 

 

O coro imperativo

ensina as sílabas minuciosas

e gravita na gramática rudimentar. 

 

Já se sabia

que os números esbracejam

a antítese da excelência. 

#2132

[Crónicas do vírus, DCCIV]

 

Legados da peste (23):

o direito à véspera,

resgatado das trevas.

6.9.21

Auto vindima

Com o mosto,

a filigrana de mim,

um inventário em falta:

aqueles inquéritos em moda

 

(dizem-se estivais

como se a época tola

precisasse de notários)

 

convocam as interiores peregrinações

que não tropecem no medo

ou na mentira. 

 

E talvez o medo 

seja o avesso da mentira

e os dois ilustram um binómio

 

(contudo, pouco reconhecido).

 

Uma história

depressa se transfigura

em estória

e das vozes estroinas 

ecoam palavras apenas lúgubres

ou a simulação das palavras intuídas. 

 

Cobram-se as folhas caducas

no pressentimento do Outono

 

(convém avivar a memória:

o Outono despoja o Verão);

 

à época tola 

arruma-se no demais restolho

e as fantasias

as elucubrações de que se compõem

os fingimentos

ficam sem apeadeiro. 

É nesta altura

que se vindimam as cepas

antes que caramelizem

e os frutos se esqueçam na podridão. 

 

(E, todavia,

as colheitas tardias

apuram a doçura.)

#2131

[Crónicas do vírus, DCCIII]

 

Legados da peste (22):

abraçamos as janelas

que desamedrontam o futuro.

5.9.21

Poemática

Fazer um poema

é como 

tirar as natas

depois de o leite fervido. 

#2130

[Crónicas do vírus, DCCII]

 

Legados da peste (21):

os códigos transfigurados

sem caução legífera.

4.9.21

#2129

[Crónicas do vírus, DCCI]

 

Legados da peste (20):

as máscaras tribalizadas

admitem a concurso

a hipótese do teatro perene.

#2128

[Crónicas do vírus, DCC]

 

Legados da peste (19):

as máscaras

já não são

a marca do teatro.

3.9.21

Introdução

Este é o prefácio. 

Antes do começo,

um esgrimir de intenções

que amanhecem regras do jogo. 

Os verbos telúricos

abraçam-se à vontade sem tutor. 

Quando já não houver páginas

e o crepúsculo ditar o seu império

nem de posfácios será embainhada

a memória.

#2127

[Crónicas do vírus, DCXCIX]

 

Legados da peste (18):

mudaram as etiquetas

e os azimutes

mas não mudámos de mais.

2.9.21

Exílio 3.0

Os moinhos adestrados

ensaiam o vento. 

No vale

um rumorejo

denúncia o rio

ainda infante. 

A manhã adolescente

aprende com o sol

no compasso 

das árvores que esbracejam. 

O silêncio campestre

povoa o planalto. 

O corpo ascende

como se tomasse conta

do horizonte. 

Não fala:

o silêncio estrutural

embebido

como idioma. 

Um avião

corta o céu

como se fosse uma vírgula

tartamudeada na paisagem.

A urze irrompe

pressentindo o outono. 

O olhar fixa-se nas cumeadas

como se estivesse à espera

de miradouros. 

No cruzamento

três caminhos oferecem-se

como hipóteses. 

A um canto,

discretamente,

umas alminhas apascentam 

um bouquet

enquanto as velas exibem

à exaustão do combustível. 

Ninguém diria

que tão ermo lugar

é curadoria de uma alma dispensada. 

Há vezes

em que o exílio se convoca

imperativo

no desmentido dos contos idílicos

industriados pela cidade. 

#2126

[Crónicas do vírus, DCXCVIII]

 

Nas ruas

às cegas

o mapa

sem fronteiras.

1.9.21

Matéria-prima

Vamos rasgar bandeiras

vamos contar histórias a cachalotes

vamos transpirar o medo que poupámos

vamos estrelar a lua por caiar

vamos desenhar as páginas com um poema

vamos ciciar a alvorada junto ao pólen em espera

vamos arrumar os contratempos no parapeito

vamos dançar as marés intempestivas

vamos devolver as flores ao mar de platina            

vamos aprender com a latitude hasteada

vamos ornar as tatuagens que se escondem na pele

vamos celebrar todos os corolários

vamos ser a matéria quimérica que somos no sangue.

#2125

[Crónicas do vírus, DCXCVII]

 

Legados da peste (17):

teremos aprendido

a não verter cal

na carne viva?

31.8.21

Planalto

Faço de meus pés

o planalto

onde estiola o mosto

que murmura versos

às veias incandescentes.

Desconverso a fala diuturna:

o remoço não começa

na haste fruída das flores colonizadas

mas nos baldios 

onde a liberdade se antecipa.

O planalto

deixo-o sozinho

a macerar a noite.

#2124

[Crónicas do vírus, DCXCVI]

 

Legados da peste (16):

está por demonstrar

se mantemos a cepa

ou se traduzimos a mudança.

30.8.21

Teoria geral dos fretes

Os comboios

trazem notícias

que são mais 

do que a soma do peso 

dos passageiros. 

Não são 

como os fretes nos cargueiros,

muito embora a especialização em fretes

seja uma constante nos compêndios

que nos atiram como lastro.

Já a tara dos comboios

arranja-se no lastro

que se compõe do peso dos passageiros. 

Os comboios

não se importam com fretes

e nem supõem

a taragem dos fretes

se pudessem saber das vidas que os habitam

transitoriamente. 

 

(Que é um eufemismo 

para o inferno são os outros

que não é lema ensinado 

aos comboios).

#2123

[Crónicas do vírus, DCXCV]

 

Legados da peste (15):

as miragens

nunca mais

vão ser iguais.

29.8.21

Congresso (partidário)

O regatear

deixou se ser nas feiras;

emigrou

para comícios

e congressos partidários.

O capataz modula a voz

comanda as emoções do séquito 

– confirmando 

que o séquito não passa de um séquito

ordeiramente obediente

cimentando uma pertença

à medida dos decibéis do palestrante

que usa a batuta desde o púlpito.

#2122

[Crónicas do vírus, DCXCIV]

 

Legados da peste (14):

os narizes assaltados

e não é por mistelas inaladas. 

28.8.21

Os hinos (e os hunos)

Os hinos

são

como papas

para tolos.