[Crónicas do vírus, DCCXXIX]
Legados da peste (45):
temos a certeza
que já não andamos
em areias movediças?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCXXIX]
Legados da peste (45):
temos a certeza
que já não andamos
em areias movediças?
Os versos pagãos
não têm escolta.
As suas mãos almiscaradas
não se arruínam na doca da noite.
Acotovelam-se os disfarçados
como se a sua dança fosse ardil.
Os versos pagãos
escondem-se no crepúsculo.
Ditam as sílabas
para o túmulo onde descansam
as vozes mutiladas.
Não precisam de regresso:
a eternidade da véspera
cuidou de os emoldurar
nas árvores marmoreadas.
Os versos pagãos
são a voz flagrante
conjeturada no ermo onde falam
os silêncios.
[Crónicas do vírus, DCCXXVIII]
Legados da peste (44):
as estátuas que faltam,
ou a mnemónica
dos tributos em débito.
Não espero grande colheita do saque.
A matéria vã recusa a solidão.
Entre a teimosia do nanismo
e o precipício dos néones
os nenúfares inertes não se escondem
nas sombras.
Os meticulosos dizeres prostituem-se
por quem os treslê.
Não é a noção de desperdício
que avança a caução.
Já tive a minha dose de embaixadores.
Não vou pelas poses estadistas
nem sufrago os mentores de apocalipses.
Sou de uma alcateia sem nome
a marca registada sem registo
e ao tira-teimas entrego
as teimas impertinentes
só à espera de pronunciamento de culpa.
Disso não espero pelo juízo alheio.
[Crónicas do vírus, DCCXXVII]
Legados da peste (43):
dedicatória aos ausentes
na anamnese dos tempos.
Fiz desta ametista
um dócil obelisco
não por falta de rima
mas por ausentes armas.
Desavencei-me da matança
não por armas ausentes
mas porque acabara de ser coroado
com a ametista,
o meu o obelisco.
Se perguntarem
direi
em intervalo das empreitadas
que não fugi dos medos;
apenas fui eu
estuário por dentro de um delta
dádiva de um esbracejar descontínuo
na alma emparedada pelos lamentos furtivos
escândalo por vezes,
talvez,
um arroubo fruindo do caudal da natureza
sempre, sempre,
na recusa de um nada.
[Crónicas do vírus, DCCXXVI]
Legados da peste (42):
seremos o futuro
arroteado
pela semente de outrora?
Um tumulto
convoca a lava
e as horas ficam
sem apeadeiro.
Os tontos
levam de vencida
o jogo onde se jogam desejos
– são embaixadores da descautela.
No íman da manhã
por cima da chuva destemperada
os olhos combustíveis
são devolvidos à letargia:
não combatem flagelos
nem acreditam em incendiários
na mais funda desilusão
dos outrora dedicados seguidores das bitolas.
Já não há lugares ideais
nem idiotas úteis.
Sei
que o destino
não é uma doença
calculada por deuses
sem paradeiro.
O destino
é o oráculo do passado
sem as dioptrias dos prescientes,
dos eunucos à medida dos desprazeres.
[Crónicas do vírus, DCCXXV]
Legados da peste (41):
os dados estão lançados
e o futuro
não se faz esperar.
Do osso fundo
não franqueia
a publicidade.
Os artistas inválidos
não chegam
às ordens do pesar.
Se não fôssemos destratados
como imberbes impensantes
e a verve não seguisse a puerilidade
um módico seria recolhido
desta que é uma árvore
desmatada.
[Crónicas do vírus, DCCXXIV]
Legados da peste (40):
ainda falta o inventário
de todas as cicatrizes
das batalhas travadas.
(Em dia de “reflexão” legalmente obrigatória em véspera de eleições)
São as desarmas
que têm voz
no espaço horizontal
que se atravessa
entre a matérias diferentes dos dias.
A boca arranca um verbo ao silêncio.
Joga-o
contra os mastins disfarçados
que colonizam a tirania
também ela um ardil.
No gotejar noturno da lua
enquistam os boémios a matéria sanguínea
como um dia fosse feito de noite
e as arcadas sinónimo de desarrelias.
O resto
fica conta dos acasos
que em descasos se armadilham
à espera da alvorada baça
e dos corpos ainda mal acordados,
estremunhados no sarcasmo da rotina.
Os olhos não vêm nada.
Mergulham
no niilismo da alma que os traduzem.
Se as migalhas varridas das vésperas
forem a poluição de uma alquimia
tirem-se à sorte as lotarias
joguem-se os corpos
contra a ebulição dos dias marasmos
e de um golpe só
vindimem-se os idiomas que se fundem
nas bocas várias que se entrecruzam.
Os horários do futuro
são um segredo que todos sabem.
Não há voto mais democrático.
Olho
por dentro do olhar
as cordilheiras amparadas no corpo
e arrumo a pele glacial no corrimão do dia.
Olho
para dentro do olhar
a macieza dos livros fartos
e da foz onde as palavras se fundem no fogo
trago as cortinas desalojadas
as janelas pendendo sobre a matriz da manhã.
Olho
depois do olhar
e encerro nas arestas gastas
o aprumo do passado.
Olho
por cima do olhar
por não ciciar segredos ao vento de atalaia
e caminho a esmo
sem temer os vultos perenes que esbracejam
no lugar mais ermo de todos.
Dizem do Outono que é feito de folhas caducas. As folhas não caducam. Beijam o chão em frente do tempo que se enxuga à espera de uma Primavera. O Outono é a clepsidra que bebe nas águas tumultuosas das primeiras chuvas. Não é decadência. É jura de um tempo depois, a safra de um exílio necessário. E antes que adulterem a ode ao Outono somando-lhe um f, que conste, para os devidos efeitos, que deste poema foi lavrado registo que tutela a sua exclusiva posse.
[Crónicas do vírus, DCCXX]
Legados da peste (36):
caucionemos
com toda a propriedade
que este é o Outono
do nosso contentamento.
Sabes?
O escuro ensina a ler
como as algas sobem ao mar
e acabam como punição do areal
ali despojadas
cadáveres.
Sabes?
O exame de código
não é pera doce,
segredavas
como se fosse preciso
guardar segredo das obviedades.
Sabes?
Guardamo-nos em arraiais caóticos
para nos pormos a cobro
do averno.
Sabes?
Os aventais não escondem a nudez
apenas a puerilidade que se cozinha
em degraus que são o espelho
da ingenuidade dos anciãos.
Sabes?
Às perguntas de retórica
dizemos sempre
“sim, sei”,
mesmos nos casos
em que somos profetas do iletrismo.
Do idioma lacerado
com vírgulas a destempo
e palavras torturadas
o mosto fora de prazo
e um logro banal.
A semiótica desaprende-se
no lagar da língua que se torna viva
deixando a sua antecessora
no lugar do morto.
De tanto usurpar a gramática;
a interrogação indeclinável:
será da propensão para a anarquia
ou da tentação da ignorância?
Depois das marés negras
que se acometem sobre o idioma
o desemprego está fadado
aos esculápios do idioma.
[Crónicas do vírus, DCCXVIII]
Legados da peste (34):
indisfarçáveis,
como dantes,
sem o freio do açaime.
[Crónicas do vírus, DCCXVII]
Legados da peste (33):
antes que sejamos
os nossos piores adversários
um novo código de conduta.
Percussão:
um cheirinho de idílio
não fossem os lírios definhar
e as sacerdotisas das virtudes
lavadas em lágrimas de unto
demorar-se nas portarias dos prédios.
Os gatos atiram unhas ao logradouro
e são as aves lacustres que aprendem
nos moinhos encantados
as doses necessárias para a moagem.
Antes fossem operários do pão
a chamar pelo rubicão
mas não estava vivalma por perto
e a ocasião ficou adiada.
A noite parida em luares
não desistiu dos lagares:
ao menos
as árvores não engravidam.
(E toda a gente
foi descansada para casa.)
[Crónicas do vírus, DCCXVI]
Legados da peste (32):
o mundo meândrico
disse
que não somos
a árvore centrípeta.
Mordomias
– diziam
antes que a noite desfalecesse.
Vultos intrusos
tornavam-se edis sem procuração
e os sonhos desmaiavam
em cadeiras que ardiam
ateadas por tochas contumazes.
Mordomias, não
– que os sonhos
não se transfiguram em pesadelos
no proveito que se acalenta
nas almas tão avarentas.