2.11.21

#2190

[Crónicas do vírus, DCCLXII]

 

Legados da peste (78):

um forte sem fronteiras,

a usura do desmedo

(ou a província da impaciência).

1.11.21

Sumo de limão disfarçado

Amoedo a diplomacia cortante

as armas guardadas no quartel 

e a demais guarnição

(como não?)

aquartelada.

 

    (Se fosse mandante

    seria das poucas ordenanças 

    por mim lavrada:

    desarmar o exército.)

 

Se a teimosia vingasse

as rodas dentadas mudavam de lugar

e o mundo,

este mundo tão perfeito

e ao mesmo repleto de deformidades,

não seria o mesmo.

 

E eu

ainda estou a tentar perceber

se um diferente mundo

seria menção recomendável.

#2189

[Crónicas do vírus, DCCLXI]

 

Legados da peste (77):

o regateio

das vozes que resgatam

o lugar dissipado.

31.10.21

#2188

[Crónicas do vírus, DCCLX]

 

Legados da peste (76):

não na boca do lobo

na pele do lobo

(outra vez).

30.10.21

O desmentido da eternidade

Dizia:

a eternidade

o lance venal que se deita

nos segredos improcedentes

de um rio que se não sustém

na demanda do estuário

onde visitado é pelo anúncio

do estertor.

#2187

[Crónicas do vírus, DCCLIX]

 

Legados da peste (75):

a corruptela da altivez

no venal esquecimento.

Dicionário do Outono

O outono falava.

A desarrumação do chão

(folhas caducas já sem lugar nos ramos)

o céu antagonista

o mar que queria transbordar

transportando no seu azimute

uma ira mal calculada

a chuva arrastada pelo vento insubmisso;

as pessoas mal-humoradas

de tão mal-habituadas a um outono severo.

29.10.21

#2186

[Crónicas do vírus, DCCLVIII]

 

Legados da peste (74):

agora 

é a voz da cacofonia

pois dantes 

foi a vez da mordaça.

28.10.21

Circo

Como somos:

se não a réplica 

do que julgamos ser

feriado enxertado em página baça

intransigência com o avesso recusado

turno onde nós desafeiçoamos do dia. 

 

Somos

o contrário do avesso 

em que juramos não habitar. 

Somos

a indiferença

por dentro de nós.

 

Nestes preparos

de que serve

o bestiário de nos vestirmos

tão solenemente importantes

se nem por dentro de nós

disso retiramos importância?

#2185

[Crónicas do vírus, DCCLVII]

 

Legados da peste (73):

a deserção

do deserto interior

em retaliação

contra a misantropia forçada.

O selo mais raro

A absolvição

não se abraça à lucidez.

Toma-se

em doses homeopáticas

antes que seja do tempo irado

a safra restante.

27.10.21

Princípio geral do pecado

As escamas puem a pele aturdida

num opúsculo de decadência

que não estava no programa.

Fala-se da senescência

e as mãos furtivas 

procuram um outro mapa

desencantadas

com o augúrio do tempo presente

que parece conspirar com um porvir belicoso.

Fogem os dedos trémulos

(decantados numa miríade crepuscular)

das estrofes aprisionadas em labirintos

gastas em fogos noturnos

como se andassem à candeia

no chamamento de uma lua embaciada.

Os corpos adiantam-se ao tempo

(diz-se, com angústia sentida).

Aos altares sem paradeiro

responde-se com a contumácia indiscreta

antes que sejam tardios 

os murmúrios que se emaranham nos sonhos.

A ferrugem das ideias

não parece ter sido vertida no estuário

enquanto o corpo extático se arrasta 

na marca da usura

(ou com a usura das marcas hasteadas,

quem sabe?).

#2184

[Crónicas do vírus, DCCLVI]

 

Legados da peste (72):

das juras desandadas

às bandeiras por arrematar.

26.10.21

Zelo

Coabita

no vagar da boca gutural

e murmura

o sangue patrimonial

no húmus arrancado aos ossos

sem embaraços nem medos

apenas

a altitude a que tomamos conta

da paisagem de que cuidamos

a beleza. 

#2183

[Crónicas do vírus, DCCLV]

 

Legados da peste (71):

do trigo e do joio

a invisível semelhança.

25.10.21

Postal ilustrado

Chamamos os diamantes por grosso

um lápis assentando no xisto

a tentar fazer a diferença. 

O fortuito pesar não pesa nas olheiras

que antes de serem um acaso

fruem das varandas deitadas 

sobre as luzes varonis. 

Sedentos de labirintos escondidos

os moradores das almas gastas

todavia 

desencomendavam-se da decadência

atribuindo-a vizinho primeiro. 

Antes que viesse a noite

que desse lugar ao luar furtivo

deixando a ossatura bem composta,

desistindo do empalidecido dia insistente

na vertigem de um beijo ajuramentado,

juntámos as páginas num sobressalto sem nome. 

Sempre dissemos

que não tínhamos medo de aeroportos

e as avenidas fartas à mercê de idiomas tantos

disso fizeram prova. 

O testamento dar-se-á a conhecer 

em memória futura. 

A espera é o que nos espera

enquanto não nos debatemos

com a exaustão da lisura.

#2182

[Crónicas do vírus, DCCLIV]

 

Legados da peste (70):

voltamos,

ao que parece,

a escrever a fala

a tinta-da-china.

24.10.21

#2181

[Crónicas do vírus, DCCLIII]

 

Legados da peste (69):

as bandeiras que bordam uma fala,

porta-vozes da vingança.

Rios sem nome

No nome de um rio

um fingimento:

quanto do caudal

leva os pergaminhos dos afluentes

e aquela água é um espelho cosmopolita

até esmaecer no lugar remoto

onde se metamorfoseia em mar.

No rio centrípeto

os caudais afluentes

dissolvem-se num nome sem petição.

E no mar

quanto do seu nome

é feito de rios 

que nele perderam voz.

23.10.21

#2180

[Crónicas do vírus, DCCLII]

 

Legados da peste (68):

a imorredoira

liberdade condicional.

22.10.21

Boca quimera

A boca que dança no fojo

não é aquela que estropeia palavras.

Os lábios são o aval do desejo

e diz-se

à boca pequena

que dela sobra uma combustão demorada.

Ao deus-dará

a boca a que chamaram quimera

arremata a doação singular

e as sílabas sopesadas são a sua iguaria.


#2179

[Crónicas do vírus, DCCLI]

 

Legados da peste (67):

a alvorada de novos oráculos

em demanda 

da peste que se reanima.  

21.10.21

Hipótese

Se em vez de juras

houvesse madrigais.

 

Se em vez de colheitas

houvesse um sinal dos céus.

 

Sem em vez de preces

houvesse palavras dedilhadas.

 

Se em vez de consolos

houvesse uma imagem avivada.

 

Se em vez de prantos

houvesse poemas.

 

Se em vez de amanhãs

houvesse uma claraboia.

 

Se em vez de achados

houvesse em ermo por habitar.

 

Se em vez de altivez

acabássemos na morada da modéstia.

 

Se em vez da avareza

morássemos no mapa do desprendimento.

 

E se em vez da ambição

desprendidos fôssemos pela mão do simples existir.

#2178

[Crónicas do vírus, DCCL]

 

Legados da peste (66):

aceso o rastilho

mil vulcões outrora reprimidos

coligam-se numa ode à violência.

20.10.21

Paradoxo de lei (ou a lei do paradoxo)

Tirando a nostalgia

e os degraus corrompidos

que tiravam a seriedade à escada

qualquer medida se sobrepunha

ao começo de um começo

só porque havia o medo da finitude. 

Em vez da cura

olhavam com suspeição para a doença.

Só por serem ateus

não entravam nas contas dos condecorados

nem os campos fartos se compunham

para reunir o seu pirronismo.

Deus

o tal que não existe

é muito democrático

na distribuição das maleitas.

 

(E disse-o sem dar pela contradição de termos.)

#2177

[Crónicas do vírus, DCCXLIX]

 

Legados da peste (65):

encurralados num vendaval

no vento que hasteia os espantalhos.

19.10.21

Essencial

Não é o tempo 

que existe; 

nós 

é que dele 

fazemos uso. 

Somos a sua fábrica. 

E sabemos: 

mesmo as folhas caducas 

que galanteiam o Outono 

cultivam 

o esvaziar do tempo.

#2176

[Crónicas do vírus, DCCXLVIII]

 

Legados da peste (64):

o exílio no futuro

enquanto 

armadura contra o passado.

18.10.21

Intendência

O colibri orquestra o oceano.

Ele não sabe que seu parto

deu-o o mar imensurável.

Não sabe

que de tão imenso

o mar se esconde com medo

de o tomarem como exíguo.

As vozes protestam:

vivemos todos num enclave

sitiados por paradoxos que nos consomem

sem sabemos a autoria das noites medonhas

das comendas que se advertem 

contra o chão puído que nos não quer.

O colibri vigia o oceano.

Ele não sabe do seu pranto

do mar hercúleo

desfeito nos estilhaços da sua fragilidade.

Não sabe que armas precisa de terçar

para libertar os farsantes do seu pecúlio

e para da madrugada sobrante erguer estátuas

poemas válidos que substituam a gramática

devolvendo aos matriciais arquitetos

as regras deixadas a apodrecer.

O colibri pergunta ao oceano

o que o traz iracundo.

O oceano deixa o silêncio a levitar

uma coreografia que se subleva 

contra os feitores de tanta coerência.

E o oceano

vulcanicamente atirado contra os cais 

que dele protegem alguém

não desiste do sufrágio das almas:

quer que elas venham às janelas

espreitar o oceano temerário, 

que mais parece um foragido a sair de si mesmo

na colonização da terra que não é seu domínio.

O colibri não desiste do oceano.

Amanhece ao seu lado,

como se um mago afagasse o seu rosto

numa tentativa de temperança

e das suas veias 

retirasse todo o veneno que o consome

que consome as pessoas vestidas na sua humildade.

Mas o oceano contraria os vates que o desenharam

bucólico;

sitiado na sua agitação insolente

imita o alpinista e cresce por cima das dunas

ocupa o chão empedrado da alameda vizinha

deixando para memória futura

um restolho que não finge o desacato.

O colibri não se inquieta.

As mealhas da História conhecem os ciclos

e da destruição episódica 

que reverte a favor da povoação das almas.

#2175

[Crónicas do vírus, DCCXLVII]

 

Legados da peste (63):

um exército de mercenários

a soldo

de conspirações

e de dogmas.