19.12.21

#2240

[Crónicas do vírus, DCCCXII]

 

Legados da peste (128):

o enxovalho da desconfiança

é o perjúrio da dignidade.

Moratória

A moratória

espera pela lassidão do tempo.

Não se adiam

se não os coices da alvorada.

Entre as cicatrizes do futuro

e o fingimento do presente

pressente-se

uma máscara descida sobre rostos

amedrontados.

18.12.21

#2239

[Crónicas do vírus, DCCCXI]

 

Legados da peste (127):

o alfabeto grego

nunca foi

tão impopular.

17.12.21

Desportugalidade em curso

Por que será

que Portugal

rima com mal?

#2238

[Crónicas do vírus, DCCCX]

 

Legados da peste (126):

um falso tempo

o falar de um legado.

16.12.21

Deixamos as palavras de fora

Deixamos as palavras de fora

por serem corpos

os seus porta-vozes.

 

Na miríade de janelas

deitamos o olhar 

nas que desembaraçam os mares.

 

Pudessem os silêncios

esboçar o tanto que falam os corpos

e eram poemas os tradutores de loas.

 

Deixamos as palavras de fora

enquanto ciciamos os segredos

de que são procuradores os corpos.

 

De pouco mais linguagem precisamos

a não ser os corpos tutores das coreografias 

em rima com o silêncio.

Tradição

Tiram-se teimas

como se tiram

(eu sei lá)

as nódoas?

#2237

[Crónicas do vírus, DCCCIX]

 

Legados da peste (125):

somos 

o viveiro

do imenso nada

em que nos consumimos.

15.12.21

Candeeiro

A casa sem verbos:

 

desarruma-se o livro centrípeto

enquanto a maresia desenha as nuvens

e um pedinte, absorto, mergulha na nostalgia.

 

(Fosse esse

o seu único sortilégio.)

 

Não são as décadas que falam;

se ao menos as preces fossem pagas

delas diriam as cinzas 

que os amanhãs compensam.

Mas o caudal vaga na curvatura do rosto

sem que todos os peixes sejam extintos

e as mãos se gastem na estreiteza do labirinto.

 

Às vezes volteio os dados

como se soubesse que desse sortilégio

um desenho reinventado 

seria um oráculo remediado.

Não desisto dos medos que acautelam

em rimas desordenadas

a meias com a meação de que me dou

guardando a parte sobrante 

para juros ulteriores.

 

Se os feiticeiros fossem ao mar

quem sabe se a safra seria generosa?

 

(Ou apenas

a medida da incorrigível cobiça

a forca que se perpetra contra os Homens.)

 

Perguntas como esta

são como dádivas anónimas

um corvo vigilante que segue o rasto do sangue

antes que o sangue seja um diadema

e da carne se exponha uma fratura;

o tempo visível não está à mostra.

Cuidamos das armas que recusam a beligerância

e sabemos

em juras sem procurador

que não sobra ninguém no pútrido campo

onde se terçam as guerras.

Ao grama

Quanto 

é o peso

do ânimo leve?

#2236

[Crónicas do vírus, DCCCVIII]

 

Legados da peste (124):

são de pontes

para fugir de precipícios

os futuros públicos concursos.

14.12.21

#2235

[Crónicas do vírus, DCCCVII]

 

Legados da peste (123):

corremos 

atrás de um tempo

que não corre para trás.

13.12.21

Princípio geral da culpa

Se o bode 

é expiatório

é porque tem

as costas largas.

#2234

[Crónicas do vírus, DCCCVI]

 

Legados da peste (122):

não é o avesso

são corpos transfigurados.

12.12.21

#2233

[Crónicas do vírus, DCCCV]

 

Legados da peste (121):

eis a filatelia da época,

um conjunto de borrões

ou um disfarce 

por dentro do disfarce.

11.12.21

#2232

[Crónicas do vírus, DCCCIV]

 

Legados da peste (120):

que olhos míopes

os que trazem a tela

no baço arnês.

10.12.21

Dúvida metódica #3

Os progressistas,

os de forte pendor revolucionário,

abecedários de preconceitos mil

(muito embora se digam embaixadores

do contrário),

comem bolo-rei pelo Natal?

#2231

[Crónicas do vírus, DCCCIII]

 

Legados da peste (119):

a transgressão

já não é sinónimo de rebeldia,

anátema

que fere de morte 

a liberdade.

9.12.21

Sem esteio

O sangue não fala

se não no placo da beligerância

quando, 

pútrido e fora dos corpos,

ostenta a sua inutilidade.

#2230

[Crónicas do vírus, DCCCII]

 

Legados da peste (118):

cada um por si 

– o grau zero da aprendizagem.

8.12.21

Translation issues

Se appointment

é nomeação

disappointment 

não devia ser 

desnomeação? 

#2229

[Crónicas do vírus, DCCCI]

 

Legados da peste (117):

desexemplo,

estes desconcertantes

tempos.

7.12.21

Cemitérios por bibliotecas

No luto

não há um eco de Deus. 

Uma silhueta vermelha

rebelde

cativa os insultos 

– heresia, oh heresia. 

Se houvesse bibliotecas por narrar

seriam olhos sem sono

os que ditavam penhor. 

Se pensar bem

as bibliotecas são sepulturas

onde os mortos se corporizam

imorredoiros.

Os cemitérios deviam dar lugar

a bibliotecas. 

Não ficava pesado 

com o chumbo das sepulturas

o chão assim libertado

e os mortos

todos os mortos

teriam na biblioteca

o seu panteão. 

#2228

[Crónicas do vírus, DCCC]

 

Legados da peste (116):

tentativa e erro

uma e outra vez,

uma coreografia inacabada.

6.12.21

Princípio geral da orografia

Se a montanha

não foi parteira 

de um rato

foi o rato que pariu

a montanha.

 

Ulisses

não nasceu

ontem.

#2227

[Crónicas do vírus, DCCXCIX]

 

Legados da peste (115):

uma emboscada

que sai do esconderijo

e nos atropela, 

outra vez.

5.12.21

#2226

[Crónicas do vírus, DCCXCVIII]

 

Legados da peste (114):

de faiança desbotada,

este ADN adulterado.

4.12.21

Matilha

Um rosto seráfico

de bronze

impede o dedilhar da mentira. 

É como se forças sem face

metessem mais à obra

para derrotar uma tempestade,

convencidas da fortuna da maré. 

O vinho apresenta-se amigo. 

Se ao menos 

os cães não andassem em matilha

os remédios 

embainhados numa nota de rodapé

diriam

em voz apenas murmurada

que não é prémio de monta

saber dos filhos 

como seguidores. 

As mentiras

não se contam aos incrédulos,

de acordo com um advogado

que se diz ter procuração de demónios inúmeros. 

Da noite para o dia

avançam os vultos disfarçados

na contagem válida das mentiras sobrepostas. 

#2225

[Crónicas do vírus, DCCXCVII]

 

Legados da peste (113):

o rosto da peste,

ou uma procuração

da sinédoque da beligerância.

 

3.12.21

#2224

[Crónicas do vírus, DCCXCVI]

 

Legados da peste (112):

servidos 

num caudal tumultuoso

como se não fosse nossa

a vontade.