[Crónicas do vírus, DCCCXIII]
Legados da peste (129):
um vai-e-vem
interminável
a perguntar pela resistência.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXIII]
Legados da peste (129):
um vai-e-vem
interminável
a perguntar pela resistência.
[Crónicas do vírus, DCCCXII]
Legados da peste (128):
o enxovalho da desconfiança
é o perjúrio da dignidade.
A moratória
espera pela lassidão do tempo.
Não se adiam
se não os coices da alvorada.
Entre as cicatrizes do futuro
e o fingimento do presente
pressente-se
uma máscara descida sobre rostos
amedrontados.
Deixamos as palavras de fora
por serem corpos
os seus porta-vozes.
Na miríade de janelas
deitamos o olhar
nas que desembaraçam os mares.
Pudessem os silêncios
esboçar o tanto que falam os corpos
e eram poemas os tradutores de loas.
Deixamos as palavras de fora
enquanto ciciamos os segredos
de que são procuradores os corpos.
De pouco mais linguagem precisamos
a não ser os corpos tutores das coreografias
em rima com o silêncio.
[Crónicas do vírus, DCCCIX]
Legados da peste (125):
somos
o viveiro
do imenso nada
em que nos consumimos.
A casa sem verbos:
desarruma-se o livro centrípeto
enquanto a maresia desenha as nuvens
e um pedinte, absorto, mergulha na nostalgia.
(Fosse esse
o seu único sortilégio.)
Não são as décadas que falam;
se ao menos as preces fossem pagas
delas diriam as cinzas
que os amanhãs compensam.
Mas o caudal vaga na curvatura do rosto
sem que todos os peixes sejam extintos
e as mãos se gastem na estreiteza do labirinto.
Às vezes volteio os dados
como se soubesse que desse sortilégio
um desenho reinventado
seria um oráculo remediado.
Não desisto dos medos que acautelam
em rimas desordenadas
a meias com a meação de que me dou
guardando a parte sobrante
para juros ulteriores.
Se os feiticeiros fossem ao mar
quem sabe se a safra seria generosa?
(Ou apenas
a medida da incorrigível cobiça
a forca que se perpetra contra os Homens.)
Perguntas como esta
são como dádivas anónimas
um corvo vigilante que segue o rasto do sangue
antes que o sangue seja um diadema
e da carne se exponha uma fratura;
o tempo visível não está à mostra.
Cuidamos das armas que recusam a beligerância
e sabemos
em juras sem procurador
que não sobra ninguém no pútrido campo
onde se terçam as guerras.
[Crónicas do vírus, DCCCVIII]
Legados da peste (124):
são de pontes
para fugir de precipícios
os futuros públicos concursos.
[Crónicas do vírus, DCCCVII]
Legados da peste (123):
corremos
atrás de um tempo
que não corre para trás.
[Crónicas do vírus, DCCCV]
Legados da peste (121):
eis a filatelia da época,
um conjunto de borrões
ou um disfarce
por dentro do disfarce.
[Crónicas do vírus, DCCCIV]
Legados da peste (120):
que olhos míopes
os que trazem a tela
no baço arnês.
Os progressistas,
os de forte pendor revolucionário,
abecedários de preconceitos mil
(muito embora se digam embaixadores
do contrário),
comem bolo-rei pelo Natal?
[Crónicas do vírus, DCCCIII]
Legados da peste (119):
a transgressão
já não é sinónimo de rebeldia,
anátema
que fere de morte
a liberdade.
O sangue não fala
se não no placo da beligerância
quando,
pútrido e fora dos corpos,
ostenta a sua inutilidade.
[Crónicas do vírus, DCCCII]
Legados da peste (118):
cada um por si
– o grau zero da aprendizagem.
No luto
não há um eco de Deus.
Uma silhueta vermelha
rebelde
cativa os insultos
– heresia, oh heresia.
Se houvesse bibliotecas por narrar
seriam olhos sem sono
os que ditavam penhor.
Se pensar bem
as bibliotecas são sepulturas
onde os mortos se corporizam
imorredoiros.
Os cemitérios deviam dar lugar
a bibliotecas.
Não ficava pesado
com o chumbo das sepulturas
o chão assim libertado
e os mortos
todos os mortos
teriam na biblioteca
o seu panteão.
[Crónicas do vírus, DCCC]
Legados da peste (116):
tentativa e erro
uma e outra vez,
uma coreografia inacabada.
Se a montanha
não foi parteira
de um rato
foi o rato que pariu
a montanha.
Ulisses
não nasceu
ontem.
[Crónicas do vírus, DCCXCIX]
Legados da peste (115):
uma emboscada
que sai do esconderijo
e nos atropela,
outra vez.
[Crónicas do vírus, DCCXCVIII]
Legados da peste (114):
de faiança desbotada,
este ADN adulterado.
Um rosto seráfico
de bronze
impede o dedilhar da mentira.
É como se forças sem face
metessem mais à obra
para derrotar uma tempestade,
convencidas da fortuna da maré.
O vinho apresenta-se amigo.
Se ao menos
os cães não andassem em matilha
os remédios
embainhados numa nota de rodapé
diriam
em voz apenas murmurada
que não é prémio de monta
saber dos filhos
como seguidores.
As mentiras
não se contam aos incrédulos,
de acordo com um advogado
que se diz ter procuração de demónios inúmeros.
Da noite para o dia
avançam os vultos disfarçados
na contagem válida das mentiras sobrepostas.
[Crónicas do vírus, DCCXCVII]
Legados da peste (113):
o rosto da peste,
ou uma procuração
da sinédoque da beligerância.