Sete
são as vidas
de um gato.
Ainda está por provar
o exercício cabalístico.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Sete
são as vidas
de um gato.
Ainda está por provar
o exercício cabalístico.
A paz recente
confiscada no dorso mau
os Homens em força bruta
sem a flor de sal como tempero
apenas o previsível caudal
tirado à força do coldre abastado.
A paz recente
miragem
subleva-se nos contrafortes do ultraje
virado do avesso
como boomerang que aterra
de cabeça
na cabeça do seu mandante.
Alguns
mais cínicos
chamam a isto
justiça divina.
Da argamassa como zelo
um oráculo do avesso:
amanhã é futuro
(dizem os evocativos)
e parece que se faz Outono.
A lousa será a cor a preceito
mas só quando a invernia
ocupar o seu lugar.
Entretanto,
não se esbanje o telúrico espetáculo
das folhas outonais que se desprendem
em vida disfarçada de decadência.
Não se omitam
das páginas emolduradas
as matizes acobreadas
que serão a gramática das florestas.
Este é o Outono
que apetece guardar
em fotografia de elevado mercado.
Os sonhos
coabitam na perenidade
que é interdita às vidas.
Os maiores tiranos
são os que ambicionam
nacionalizar os sonhos.
A máquina dos sonhos
é a maior invenção
de todas.
Não fazer ondas
para não se ser vítima
de um tsunami.
[Teoria do boomerang]
As cicatrizes homologadas
antes que o tempo traga uma razia
e os penhores subam aos mastros,
o aval emprestado ao grito.
São as vozes de comando
que emudecem
matrizes frágeis no tabuleiro dos corpos.
Dizem:
amanhã tratamos do assunto.
É por isso
que as cicatrizes
se tornam tatuagens.
Ir desta para melhor
é mentira de um distraído
ou é contado
pelo suicida
ou pelo afogado em antidepressivos.
“(...) o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso. (...)”
Mário Cesariny, “De Profundis Amamus”, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 1957.
Cesariny
foi um iluminado
um homem muito à frente
do seu tempo;
em 1957
já pressentia
o fogo-fátuo
das redes sociais.
Arranca-se a voz trémula
aos peões que aparecem à frente
em substituição das covardia
dos mandantes.
Eram a carne para canhão
hoje
são a carne e os ossos e o sangue
e almas
em dádiva
aos arsenais perfidamente sofisticados.
De um golpe só
o pensamento estaciona na angústia
de quem sabe
tanta ser a lucidez dos Homens
em proveito de totens que tornam
ridiculamente nula
a vida do Homem sem nome
– em proveito dos soezes
que não sabem que os Homens têm nome.
Aos soldados
devia-se ensinar
a saberem soletrar os seus nomes
e meia dúzia de artigos
(apenas os mais distintos)
da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Para que o Homem
todo o Homem que tem um nome
e uma alma não venal
não tenha de derramar a angústia
ao saber de todas as terras
onde o sangue vertido
tomou o lugar
das lágrimas.
Para que esse Homem,
todo e sem exceção Homem,
não se esqueça do seu nome.
Para que não haja
soldados
apenas Homens.
Delírios místicos
– dizia, ufano
Convencido do que fora
Património pretérito;
não precisava de ter como morada
o hospital psiquiátrico.
[“Pára-me de repente o pensamento”, de Jorge Pelicano]
Dos jacarandás
o verbo irradiante
uma centelha
que adormece as trevas
o curso de um rio
de onde mana o ar sem areias
o decilitro cheio
sem se disfarçar de meias medidas
a fronteira desaproveitada
no caudal de calendários
que aformoseia
um dia
sozinho.
No estábulo das ideias
o jacarandá acabou de florir
e eu sei
que por maior prodigalidade que seja
ninguém se encontra
nem nas bainhas descosidas
nem no centímetro a mais,
condenado
ao desperdício.
Dos chás
em possibilidade referencial
cheias ainda as chávenas
que por endereço têm
almas outras.
[Londres]
Mentir para viver
a praça-forte do resignado
disfarce que já nem é
fingimento
acorrentando num palimpsesto
de paralelas inverdades
sem se constituir arguido
por mitomania.
Mentir para viver:
ou não saber
que a mentira vem no dicionário
e não se subleva
contra os seus patriarcas.
Na boca
o meu corpo
um vulcão pária
onde a tua pele se tatua
na certeza que é amanhã.
Se ao menos
hoje
houvesse um vulcão ativo
só para cobrir os olhos
com a cinza.
Se ao menos
do sangue vívido fruíssem
peixes
– eu lá sei se peixes –
e um detonador ressuscitasse o zero
e desse zero subissem montanhas
o punho irado a remexer o céu
e dele,
indisposto,
um vulcão do avesso
bolçasse a sua lava amoedada.
Hoje
só hoje
até que a fratura dos dias
dissesse
em murmúrio sortílego
que as migalhas do medo
não contam para o PIB
nem as realezas defuntas
passam das páginas amarelecidas
em que se sepultam.
Do pé do precipício
com paisagem improvável a beijar os olhos
sacudimos as cinzas que os embotaram
e de alma lavada
as mãos tingindo o céu com uma cor despoluída
dizemos o que dantes não foi dito
e dançamos
– ah! sim, dançamos! –
para povoar o sangue com a História do futuro.
Toda esta gente
tanto este arrependimento
todas as luzes desfocadas
talvez o areópago indesejado.
Todo o penhor desalmado
tanta a ferrugem na boca
todos os remédios fingidos
talvez a suposição de um abismo.
Toda esta fala
tanto o silêncio
todas as estrofes permeáveis
talvez na abastança das almas.
Todo o critério exilado
tanta a bravata improfícua
todos os dedos altivos
talvez a noite aberta aos audazes.
Um murmúrio do Outono
conta com a chuva morna
vertida pelo céu pendido.
É uma chuva
que mente ao calendário
e diz aos costumes:
os marcos geodésicos do tempo
são arbitrárias convenções.
A chuva inaugural
desmentindo o Verão em seu lugar
amacia a pele gasta pelo sol repetido
em presságio outonal.
Sentado nos lugares da frente
deixando
o corpo experimentar a chuva destemida
como se houvesse um chamamento
pela dobra do Verão:
a chuva,
dizem uns protestos ecoados
por vozes em surdina,
foi proclamada a destempo,
cicia
as páginas que são uma profecia
arrancando outras de permeio
em ligação direta
com um tempo que está à espera de tempo.