2.10.22

Um espelho de chuva

Há lágrimas

que não são prantos. 

Derramadas pelo céu

são mecenas do outono

(a preferida estação).

1.10.22

Injustiças indocumentadas (24)

Se o primeiro milho é para os pardais

para quem será o segundo

(e o terceiro e o quarto e o quinto e)?

#2541

O clero,

clemente,

tão atencioso

com os prazeres 

dos paroquianos.

 

[Oxímoro]

30.9.22

Tirania do des-saber

Desde o lugar onde estou

dou à dúvida o benefício metódico. 

Dos cultores das certezas afiveladas,

pederastas dos des-saber,

fujo como se uma dissidência matriz

ditasse o sentido único

(e entro em contramão,

concedo,

por negação do metódico benefício da dúvida):

dos lugares-tenentes de tão ousada

ausência de dúvidas,

deles que já têm respostas no coldre

antes de haver tempo para o lugar das perguntas,

quero saber ser meu paradeiro

um antípoda lugar. 

Dos empobrecidos espíritos,

macilentas imagens que se autorreproduzem

ao sentirem a sua proclamação 

no espelho em que admiram,

quero ser antítese:

deste ensimesmar todavia autista,

em fuga dos predicados do muito mundo lá fora

tão maior do que a sua pequenez, 

espere-se apenas 

colheita sofrível. 

Injustiças indocumentadas (23)

Uma estrela cadente

não é uma estrela decadente;

uma estrela decadente

pode ser uma estrela cadente.

#2540

As palavras cruzadas

são como

as pernas cruzadas.

 

[Insinuação]

29.9.22

O jogo para depois

O que se joga depois,

as armas deitadas na vertical

dando estuque às paredes estilhaçadas,

e todas as luzes apontadas

ao luar seráfico que se agiganta contra o dia.

 

O que se joga depois:

as peças sublevadas

contra o despedaçado anfiteatro

por onde passam as artérias decadentes

o sangue vagaroso

as estrofes mundanas que se seguem

ao silêncio diligente.

 

Cortam-se a eito as arestas que doem

e fica o vazio

um imenso lugar à espera de paradeiro

à espera que o colonizem.

Não serei eu

o agente escolhido

que a minha vontade é indisponível

e da noite levo os cestos vazios

para depois neles juntar todas as mãos idas

e chamar ao medo os nomes mais feios.

 

Deixo a espada hasteada 

para destroçar os peões,

a quem chamo mastins.

 

O que se joga depois

é só outro jogo à espera de vez.

As páginas

não são diferentes 

de outrora,

contra as esperanças fermentadas

no melhor mel.

#2539

Dou ao vagar

a vaga imprecisa

antes que vague

na vaga excruciante

da maré.

28.9.22

Ferrugem

Feita a finta ao finório

faltava furtar ao farsante

o fruto fruste em fábula final. 

Falei ao fiável

fugindo da frustração fiel

no fogo fermentado no facho fecundo. 

Não é ao furibundo,

o furtivo francês em força fatal,

que a festa se afidalga:

o forte fundiu-se na fervura tão fútil

e a farda enfastiou-se no fácil farejo. 

#2538

Não estou convencido

que a teoria da conspiração

seja o consistório da prática.

27.9.22

Das enciclopédias que não interessa dar parte

As portas duras 

tiram a alfândega da letargia. 

Dizem:

há fronteiras

outra vez

onde já antes tiveram praça. 

Ao menos 

sabemos

que o sangue não obedece

aos impedimentos dos burocratas

das almas derrotadas pelo nanismo

dos que metem baias nas pessoas

só porque têm diferentes falas

e culturas e costumes

e tornam essas baias em metáforas

de balas. 

Quem inventou as fronteiras

devia ser condenado ao olvido

e rasgadas seriam 

as páginas a eles dedicadas 

na enciclopédia dos saberes.

#2537

Seja feito de asas

o idioma apurado

e o mar sem fim

por cima das fronteiras.

26.9.22

Notas avulsas do dia avulso

Notas do dia:

a nortada

tempera o Outono

ainda madraço;

 

contra os impropérios

e outras miopias mentais

as bocas

todas as bocas 

– sem exceção – 

não podem

não devem

ser caladas

ou temos o dever de arcar

com não solicitados tutores

que apascentam a moral 

que não lhes diz respeito

(a que a cada um pertence)?

 

a volumetria da acefalia

precisava de ir a termas

só para tentar uma cura;

 

Berlusconi foi retirado

do cemitério;

 

houve um rapaz

perdido no meio

de uma roda de bicicleta 

furada:

jurou

como se fosse preciso jurar

que fora muito diligente

e jurou ainda

que não sabia como acontecera

a avaria 

– e eu lembrei-me do “Avarias”

a maratona minimal repetitiva;

 

para honrar a rotina

(e a monotonia acrisolada)

o comentador-geral do reino

comentou

sobre variegadas pendências;

 

ao menos sei

que outubro vem depois de setembro

sem ao menos pressentir

nas sílabas de outubro

se este palco contínuo

risivelmente contínuo

se encerra na decadência do tempo.

 

A palavra de passe

do dia 

é

 

remediar.

#2536

Arrancam-se as teimas

no tirocínio da tempestade:

a cólera 

não é a moeda forte. 

25.9.22

Injustiças indocumentadas (22)

Ao parecer de César 

não basta ser mulher, 

tem de ser sério.

#2535

Não percebo

por que ainda ninguém inventou

gurus de autoajuda

para ensinar a sair de escadas rolantes.

Sociedade Anónima

Longa se torna

a estrada

no trono largo

em que tem estrado.

Neste estado letargo

tarda o lastro

e nas tornas se estuda

a litania estrénua.

Torna longa

a estrada

e larga no estirador

a trova que incendeia

o estridente lugar.

24.9.22

Injustiças indocumentadas (21)

Sete

são as vidas

de um gato.

Ainda está por provar

o exercício cabalístico.

#2534

A boca acorrentada

refém de um navio

que não traduz marés.

23.9.22

Dia-a-dia (altar dos apedeutas)

A paz recente

confiscada no dorso mau

os Homens em força bruta

sem a flor de sal como tempero

apenas o previsível caudal

tirado à força do coldre abastado.

A paz recente

miragem

subleva-se nos contrafortes do ultraje

virado do avesso

como boomerang que aterra

de cabeça

na cabeça do seu mandante.

Alguns

mais cínicos

chamam a isto

justiça divina.

#2533

As pontes dinamitadas

a carne corrompida

as vidas efémeras

irrisórias.

22.9.22

Outonal

Da argamassa como zelo

um oráculo do avesso:

amanhã é futuro

(dizem os evocativos)

e parece que se faz Outono.

A lousa será a cor a preceito

mas só quando a invernia

ocupar o seu lugar.

Entretanto,

não se esbanje o telúrico espetáculo

das folhas outonais que se desprendem

em vida disfarçada de decadência.

Não se omitam

das páginas emolduradas

as matizes acobreadas 

que serão a gramática das florestas.

Este é o Outono

que apetece guardar

em fotografia de elevado mercado.

#2532

O aroma deste tempo

não é um comboio

que queira 

para minha leva.

Onírico

Os sonhos 

coabitam na perenidade 

que é interdita às vidas.

 

Os maiores tiranos

são os que ambicionam

nacionalizar os sonhos.

 

A máquina dos sonhos 

é a maior invenção 

de todas.

21.9.22

Injustiças indocumentadas (20)

Não fazer ondas

para não se ser vítima

de um tsunami.

 

[Teoria do boomerang]

#2531

O mau da fita

não é mau

sem fita.

As cicatrizes

As cicatrizes homologadas

antes que o tempo traga uma razia

e os penhores subam aos mastros,

o aval emprestado ao grito.

São as vozes de comando

que emudecem

matrizes frágeis no tabuleiro dos corpos.

Dizem:

amanhã tratamos do assunto.

É por isso

que as cicatrizes 

se tornam tatuagens.

20.9.22

Injustiças indocumentadas (19)

Ir desta para melhor

é mentira de um distraído

ou é contado

pelo suicida

ou pelo afogado em antidepressivos.

O oráculo de Cesariny

“(...) o vinco das tuas calças

está cheio de frio

e há quatro mil pessoas interessadas

nisso. (...)”

 

Mário Cesariny, “De Profundis Amamus”, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 1957.

 

Cesariny

foi um iluminado

um homem muito à frente

do seu tempo;

em 1957

já pressentia

o fogo-fátuo

das redes sociais.

#2530

Sou

o xisto

onde se deita

o luar.