Obstinados
os poetas bebiam nas palavras
a lava que arrefecia o sangue.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Desse palco soube distância.
O povoado sabia-se torto
sem ser pela impureza
a dissidência:
as fragas
sussurravam na esquina do Outono
e a linhagem das palavras entoadas
soava a farsa invalidada
pela muralha da cidade.
Mas o Outono era tardio.
O ciciar do caudal dele dizia ser timorato
um pouco como as bocas
que eram parentes da afoiteza
mas não passavam da medida pequena
assim encerrando-as
na sua soez descapacidade.
Ao menos
à noite
ninguém via rostos e bocas e rio
e até os murmúrios se metamorfoseavam
em silêncios.
A voz perdeu as sílabas
mas não se calou.
Os calos da boca
enchem-se de brio
e resistem
resistem ao veneno bolçado
pelos apátridas que desadoram
a liberdade.
Estado de sítio:
tomamos a convulsão como verbo
reféns do imorredoiro protesto
contra o estado das coisas.
Consideramos:
é da natureza das coisas
a sublevação
contra a natureza das coisas
pois as coisas
em sua natureza
seriam destinadas ao malogro
se de nós soubessem
a apatia.
E nem que preciso seja
adejar uma conspiração
devolvemos à nostalgia a sua inutilidade
por insatisfatória condição;
preferimos
avançar a desmedo
arroteando os touros à medida que desfilam
desfazendo as bandeiras que se supõem
equinócios baratos
juntando nas mãos a neve vagamente prometida
coabitando na memória do presente
– o maior presente que deixamos
em memória do futuro.
A rendição
não se traduz no nosso dicionário.
Queremos ser procuradores do avesso continuo.
Há quem garanta
tratar-se apenas de feitio mal concebido.
Não somos desmancha-prazeres
nem é da nossa lavra
a contradição condenada a ser um logro.
Não escondemos sob o tapete
as más cores que embaciam
o estado das coisas.
Somos
apenas
seus legítimos artesãos
sem esconder
as reentrâncias da contrafação.
Consulta de saldo
sobre o tempo sobrante
em crédito à conta da vida.
O empenho menor
atraiçoa o sangue murmurado
arrefece os dedos
o étimo da capitulação.
Não se sabe
ninguém sabe
a que úbere se dá a vida a beber
pois de sortilégios vários
cumpre-se
a função mínima.
O recibo da consulta de saldo
dança um número.
Se fossem varandas expandidas sobre o céu
diria palavras inestimáveis,
incomensuráveis,
esse número em forma de aval.
Seria um salvo-conduto
quase
uma garantia vinculativa
amarrada a um cumprimento escrupuloso
sem pretextos como enredo
ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis.
Se fosse assim,
que não é.
A transgressão da garantia
começa na ausência de entidade reguladora:
ainda bem
que não há
uma ASAE
para as vidas.
A cada luar sentado no telhado
uma quimera que entra na fala
e compõe os oráculos sem destino.
A cada fado tresmalhado
uma centelha que não se cala
e anima o vento clandestino.
A cada erro sem ser combinado
a carne arrematada pela dura bala
e um espelho com rosto prístino.
Num pregão dissimulado
a pregoeira lamentava
a sorte maldita.
Ao menos
alguém houvesse
em pose burocrática
a lembrar
que uma sorte maldita
é um oximoro:
se é maldita
entra nos pertences da contrariedade
ou se é sorte sem espinhas
tem de levar na sela
um adjetivo conforme.
Serve de afeição
a cordilheira entrançada
os folhos revirados como se fossem
as entranhas viradas do avesso
que é onde se atesta
a têmpera de que versam as entrelinhas.
No bojo que desalinha do modo
a cordilheira contém
as rugas da palma da mão
fica à mercê desta cartografia
desligada de tudo
frágil
tão frágil que nem parece
o sinaleiro do dicionário sem autoria.
À vista desarmada
limitada pela miopia da distância
dir-se-ia da cordilheira
ser uma cortina de ilusões
o logradouro
onde se entretêm os falsos letrados.
Não é dessas cordilheiras
que se compõe a minha carne combustível:
os veios que rompem como arestas
balbuciam as dores excruciantes
como
as que mortificam
misantropos voluntários.
Os maus são uma minoria
– era da lavra de um espelho
onde se abastavam as desmedidas
e ninguém rimava com ilusão.
Os maus são a minoria
– sempre que os ventos
mugiam os tetos plúmbeos
e só os desatentos fugiam do Éden.
Os maus, minoria
– que uma centelha refulgente
em seu ocaso improvável
devolve os férteis frutos às mãos
e os desvalidos perdem a linhagem.
Os maus são uma minoria
– da tença de quem esgota a inverdade
e dela lança a sementeira
que estilhaça lugares-comuns delapidados
para um fogo de artifício ao menos extasiante.
A lagoa
só pode ser um lago pequeno
se o feminino for o santuário
da pequenez.
Se a lagoa
é um lago pequeno
os farroupilhas da nova língua
andam distraídos.
Se a voz sobe à parada
e desfila
como se entoasse
botas cardadas
a vil menção, desonrosa,
de todo o arsenal promitente
dos Homens saber-se-ia a sepultura
onde em estado terminal
se confundem com o selo de garantia
da sua grandeza.
Mas a voz é eunuca
partidária das fragilidades escondidas
um hino lancinante
ao desespero mascarado de afoiteza.
Nos teatros que não interessam
passeiam avinagradas falas
embotadas pelas balas dilacerantes
devolvidas
como vingança inadiável
sobre os beligerantes sem máscara.