16.10.22

#2556

Obstinados

os poetas bebiam nas palavras

a lava que arrefecia o sangue.

15.10.22

Injustiças indocumentadas (30)

Quando chove

molha-tolos

só mesmo os mesmos

saem à rua.

#2555

Ouvir as nuvens

em seu sereno vagar

e extrair dos sonhos

os medos de atalaia.

14.10.22

Casa de penhores

Desse palco soube distância. 

O povoado sabia-se torto

sem ser pela impureza 

a dissidência:

as fragas 

sussurravam na esquina do Outono

e a linhagem das palavras entoadas

soava a farsa invalidada

pela muralha da cidade. 

 

Mas o Outono era tardio. 

 

O ciciar do caudal dele dizia ser timorato

um pouco como as bocas 

que eram parentes da afoiteza

mas não passavam da medida pequena

assim encerrando-as 

na sua soez descapacidade. 

 

Ao menos

à noite 

ninguém via rostos e bocas e rio

e até os murmúrios se metamorfoseavam

em silêncios. 

#2554

Sobre 

a matéria dos sonhos

a súplica do olvido.

13.10.22

Testa-de-ferro

A voz perdeu as sílabas

mas não se calou.

Os calos da boca

enchem-se de brio

e resistem

resistem ao veneno bolçado

pelos apátridas que desadoram 

a liberdade.

#2553

Em dívida 

pela dádiva devida

no rumor 

da dádiva da dívida.

12.10.22

Estado de sítio

Estado de sítio:

tomamos a convulsão como verbo

reféns do imorredoiro protesto

contra o estado das coisas. 

Consideramos:

é da natureza das coisas

a sublevação 

contra a natureza das coisas

pois as coisas

em sua natureza

seriam destinadas ao malogro

se de nós soubessem 

a apatia. 

E nem que preciso seja 

adejar uma conspiração

devolvemos à nostalgia a sua inutilidade

por insatisfatória condição;

preferimos 

avançar a desmedo

arroteando os touros à medida que desfilam

desfazendo as bandeiras que se supõem

equinócios baratos

juntando nas mãos a neve vagamente prometida

coabitando na memória do presente 

– o maior presente que deixamos

em memória do futuro. 

A rendição 

não se traduz no nosso dicionário. 

Queremos ser procuradores do avesso continuo. 

Há quem garanta

tratar-se apenas de feitio mal concebido. 

Não somos desmancha-prazeres

nem é da nossa lavra

a contradição condenada a ser um logro. 

Não escondemos sob o tapete

as más cores que embaciam

o estado das coisas. 

Somos

apenas

seus legítimos artesãos

sem esconder 

as reentrâncias da contrafação. 

#2552

Dos arquitetos daninhos

colho a indiferença.

11.10.22

MB da vida

Consulta de saldo

sobre o tempo sobrante

em crédito à conta da vida. 

 

O empenho menor

atraiçoa o sangue murmurado

arrefece os dedos

o étimo da capitulação. 

Não se sabe

ninguém sabe

a que úbere se dá a vida a beber

pois de sortilégios vários 

cumpre-se

a função mínima. 

 

O recibo da consulta de saldo

dança um número. 

Se fossem varandas expandidas sobre o céu

diria palavras inestimáveis,

incomensuráveis, 

esse número em forma de aval. 

Seria um salvo-conduto

quase

uma garantia vinculativa

amarrada a um cumprimento escrupuloso

sem pretextos como enredo

ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis. 

Se fosse assim,

que não é. 

A transgressão da garantia 

começa na ausência de entidade reguladora:

 

ainda bem 

que não há 

uma ASAE 

para as vidas.

#2551

Não maltratem o mensageiro

se a culpa é da babel

em que respiram os mandantes.

10.10.22

Injeção eletrónica

A cada luar sentado no telhado

uma quimera que entra na fala

e compõe os oráculos sem destino. 

 

A cada fado tresmalhado

uma centelha que não se cala

e anima o vento clandestino. 

 

A cada erro sem ser combinado

a carne arrematada pela dura bala

e um espelho com rosto prístino.

#2550

A saliva

não desiste

da pele improvável.

9.10.22

A sorte da pregoeira

Num pregão dissimulado

a pregoeira lamentava

a sorte maldita.

Ao menos

alguém houvesse

em pose burocrática

a lembrar

que uma sorte maldita

é um oximoro:

se é maldita

entra nos pertences da contrariedade

ou se é sorte sem espinhas

tem de levar na sela

um adjetivo conforme.

#2549

Sirvam 

a onomatopeia predileta

o gongórico perorar

cacofonia elevada ao megafone.

8.10.22

#2548

Quebra

as cabeças

antes que sejam

um quebra-cabeças.

7.10.22

Injustiças indocumentadas (29)

Um banho de multidão

é primo torto do insalubre,

um bando da multidão.

Injustiças indocumentadas (28)

Quanta é a dose em falta

para o meio-maluco

não pecar por defeito?

#2547

Dos corsários

nem a fazenda

se aproveita.

 

[Trova dos conformistas]

6.10.22

Cordilheira

Serve de afeição

a cordilheira entrançada

os folhos revirados como se fossem

as entranhas viradas do avesso

que é onde se atesta

a têmpera de que versam as entrelinhas.

No bojo que desalinha do modo

a cordilheira contém

as rugas da palma da mão

fica à mercê desta cartografia

desligada de tudo

frágil

tão frágil que nem parece

o sinaleiro do dicionário sem autoria.

À vista desarmada

limitada pela miopia da distância

dir-se-ia da cordilheira 

ser uma cortina de ilusões

o logradouro 

onde se entretêm os falsos letrados.

Não é dessas cordilheiras 

que se compõe a minha carne combustível:

os veios que rompem como arestas 

balbuciam as dores excruciantes

como 

as que mortificam 

misantropos voluntários.

#2546

Não há 

uma maneira má

de dar 

uma boa notícia.

5.10.22

#2545

O adeus que se perpetua,

a morada da apatia

no medo que tem âncora

no passado.

Os maus são uma minoria

Os maus são uma minoria 

– era da lavra de um espelho

onde se abastavam as desmedidas

e ninguém rimava com ilusão.

 

Os maus são a minoria 

– sempre que os ventos 

mugiam os tetos plúmbeos

e só os desatentos fugiam do Éden.

 

Os maus, minoria 

– que uma centelha refulgente

em seu ocaso improvável

devolve os férteis frutos às mãos

e os desvalidos perdem a linhagem.

 

Os maus são uma minoria 

– da tença de quem esgota a inverdade

e dela lança a sementeira 

que estilhaça lugares-comuns delapidados

para um fogo de artifício ao menos extasiante. 

4.10.22

#2544

O amoedado estiolar

à medida 

que o outono se afiança

na medida da decadência. 

Injustiças indocumentadas (27)

A lagoa

só pode ser um lago pequeno

se o feminino for o santuário

da pequenez.

Injustiças indocumentadas (26)

Se a lagoa

é um lago pequeno

os farroupilhas da nova língua

andam distraídos.

3.10.22

Injustiças indocumentadas (25)

O malmequer

não pode ter querença

de nome de flor.

Atrocidades

Se a voz sobe à parada

e desfila

como se entoasse

botas cardadas

a vil menção, desonrosa,

de todo o arsenal promitente

dos Homens saber-se-ia a sepultura

onde em estado terminal

se confundem com o selo de garantia

da sua grandeza.

 

Mas a voz é eunuca

partidária das fragilidades escondidas

um hino lancinante

ao desespero mascarado de afoiteza.

 

Nos teatros que não interessam

passeiam avinagradas falas

embotadas pelas balas dilacerantes

devolvidas

como vingança inadiável

sobre os beligerantes sem máscara.

#2543

Não encomendo

a bandeiras

o esconderijo da nudez.

2.10.22

#2542

Ordeno a libertação do verbo,

a única lei legítima.