27.10.22

#2567

Muito se teoriza

sobre a “bomba suja”

mas as únicas bombas limpas

que conheço

são as bombas de água.

26.10.22

Protesto contra os que protestam contra o Outono

O musgo

dava uma ideia

do Outono. 

Do mesmo modo,

os cogumelos que medravam

livres

nos baldios à mercê 

do sortilégio outonal.

 

Desta vez,

as estações 

não estavam do avesso. 

 

As pessoas

paradoxalmente 

andavam tristonhas

refogadas em lume brando

pela chuva instalada há dias consecutivos

e a humidade bafa que emprestava

um ameno quase exótico

aos dias arrastados. 

 

As pessoas

desprezam o bucolismo do Outono. 

 

Não apreciam

a metamorfose das folhas das árvores

escrevendo o seu próprio óbito

na decadência selada pelo acobreado mágico. 

Se pudessem

os desavindos com o Outono

saltavam a estação,

melhor dizendo, 

saltavam as duas estações 

que obrigam a abrigo e agasalho. 

 

Os que desaprovam o Outono

não sabem

que o Outono não é o espelho da decadência;

é um amplexo que se ajuramenta 

na renovação que encontra sedimento

na hibernação heurística. 

 

Nós também hibernamos

sem ser um Outono 

que nos desaprova. 

 

As pessoas

invejam o Outono

porque não têm mão

na metamorfose 

que é a promessa do Outono. 

#2566

A língua mordaz

vai aos estilhaços

e devolve o chão

aos cultores de ilusões.

Injustiças documentadas (37)

A lagosta é suada.

Pudera.

Com a água a ferver

que lagosta não acaba

suada?

25.10.22

Injustiças documentadas (36)

Devíamos 

ser contra

o ordenado

mínimo.

O anarquista resolvido

Um dia 

disse um poema

e cresci três centímetros. 

No dia 

a seguir

deixei que outro poema

se aninhasse no colo da manhã

e soube ser aprendiz

dos vultos selados no anonimato. 

Dias 

mais tarde

só me apetecia organizar

uma coletânea de poesia 

diversa, 

como diversa deve ser a poesia

enquanto mostruário da vida 

em todas as suas conceções.

Tornei-me 

ministro de uma coisa qualquer

que, 

todavia, 

não soube dizer qual,

num governo de um ministro só

(sem a importunação do chefe da hierarquia). 

O feitiço da poesia

alcançara o sortilégio

de tornar ministro 

um anarquista 

que pensava não ter remédio. 

#2565

Que lugar mendaz

este que respira

o medo da noite.

Injustiças documentadas (35)

Os gatos

não comem

as línguas.

24.10.22

A sátira não é um cisma

Sendo a sátira um jogo de luxo

em que ao tabuleiro não eram admitidos

pobres de espírito

desenganados estivessem

os que fossem em demanda de legendas. 

A sátira com legendas não é sátira

é a placa toponímica da indigência. 

Dando o ouro da sátira como garantia

fica sempre a garantia

de nas imediações vegetarem

ou os que desconfiam 

que a sátira disfarça uma linguagem cifrada

ou os que ficam aquém do sentido alegórico

das palavras em que se encerra a sátira. 

Nunca se pode contentar 

uns e outros.

#2564

O adubo

enxerta-se nas veias

e o sangue cresce,

lunar.

23.10.22

#2563

Dar um jeitinho,

ó povo

pequenino.

22.10.22

Injustiças indocumentadas (34)

Nem toda a mostarda

sobe ao nariz.

#2562

Salvo-conduto

cheio de habilitações

mente por nós

agora e na hora

da nossa hipocrisia.

21.10.22

Buenos Aires (promessa)

Ouvimos

em surdina

os verbos esquecidos. 

 

Lamentamos

em coro

as páginas desfalecidas. 

 

Avisamos

o passado

para não ser vulto. 

 

Arrefecemos

em segredo

a candeia do medo. 

 

Habitamos

de corpo inteiro

o sangue crepuscular. 

 

Admitimos

nas nossas mãos

as bocas impacientes. 

 

Resolvemos

sem aviso prévio

as rugas que adejam no ocaso. 

 

Desenhamos

em sílabas desabituadas

os labirintos que se antecipam. 

 

Fintamos

com a destreza do Maradona

as trovoadas impertinentes. 

 

Marcamos

nas costas do segredo

o lugar em Buenos Aires.

#2561

Os rostos 

encenam os véus

que deixam as almas

sem tradução.

20.10.22

Manifesto (à mente que manifesta sem mentir não se atirem pedras)

Não abro mão

da coroa de espinhos

da tabuada dos sete

do rigor do Correio da Manhã

da feijoada sem tripas

da literatura que é uma chaga

da prolixa fala dos aspirantes ao estrelato

dos negociantes e dos regentes em concubinato

da D. Graça da DGS

dos gurus condutores de almas

dos sebastiões em que o povo insiste

na diarreia verbal de S. Exa. 

(o comentador incidental do reino)

dos fingimentos que se fingem a si mesmos

dos condutores que anularam o pisca

do incrível otimismo nacional

e do seu gémeo separado à nascença

o derrotismo federalizado

dos chicos-espertos (essas aves abundantes)

do ministro que ainda não percebeu que já não é

das mentiras que disfarçam as suas próprias farsas

dos agelastas inconsequentes

dos ignorantes que têm sempre uma opinião

dos eruditos do alto da sua pança farta

dos parasitas montados na ética republicana

nos aríetes das moralidades (sem exceção)

dos juízes em causa alheia

dos tribunícios sem palco que não seja o seu espelho

dos que tropeçam no conhecimento de tudo

(vulgo: tudólogos)

do Galamba

dos inovadores semânticos

dos tropistas das modas

da pandemia de influencers

do esgoto terminal que desagua no horizonte

da bandeira pútrida

e dos seus arautos sem saberem da sua decadência

e não abro mão

de um receituário de ironia.

#2560

Como os encantadores de serpentes,

as gongóricas personagens

que tomam conta da praça pública. 

19.10.22

Injustiças indocumentadas (33)

Dizer

que se dá a cara

pode sair muito caro.

Ecuménico do avesso

Soubesse da missa a metade 

– era em jeito de pretexto 

que acendia a ladainha do arrependimento

à espera da absolvição

uma indulgência anónima 

que seria um sibilino juntar das mãos

sobre o sono pacífico. 

Mas o mar era atlântico

e estava uma tempestade das antigas

 

(os mais novos quase nem sabem

que a tempestade tem lugar no dicionário)

 

e, para o mais que contasse,

nem uma metade da missa sabia, 

quanto mais o outro meio. 

Parecia prometida

a noite como embaraço

e um sono tumultuoso

viajando pelas ondas cavadas

que são o chão próprio

dos arrependimentos sem serventia. 

Injustiças indocumentadas (32)

A noção vaga

da chuva torrencial

deu para confirmar

que os cavalinhos 

foram todos retirados 

para seus aposentos.

#2559

Os espantalhos não contam

para o cadastro dos cidadãos.

18.10.22

Injustiças indocumentadas (31)

O trinta e um

é um grande trinta e um

porque é um anagrama

do treze.

Totem

Risco a página do dia:

é como se fosse 

um baldio

os ossos frios estalam

na embocadura da noite

deixando-a 

muda. 

À página do dia

sabotada pelo estrénuo movimento

em que se senta a angústia

outra suceder-se-á. 

Do lugar em que me encontro

na posse do dia irremediável

não sei como será ornamentada

a página 

que se segue. 

Só sei que todos os dias

são um fio irremediável

assim que se encontram 

com o seu saldo. 

As páginas dos dias

quando andam da frente para trás

são um volume de contratempos

o lugar sem nome para 

a rendição.

#2558

Ao teu lado

as manhãs 

são boreais.

17.10.22

Extraviado

E se da matança não houver ouvidos

os sentidos rasgados desmaiam no caudal

talvez sangrando as palavras opacas,

este o graal consentido.

O ringue está sempre pronto:

os imprevidentes impérios

tutelam-se nas mangas dos burocratas

tornam-se adultos 

no avesso das páginas remendadas.

As mentiras sobram nas goteiras

cobrem as vidraças com o orvalho demorado

e as pessoas avançam no meio das ilusões

apagadas

como sempre são as pessoas

no fingimento de serem as peças centrípetas

que sobem a palco

ao palco sem residência nem existência certa.

E as palavras

invisivelmente sangradas

escorrem no meio da podridão coeva.

Não se enfastiam

os mecenas do teatro dos fingimentos;

sabem que só são periscópios

enquanto os demais 

forem corsários da grande mentira universal,

a mentira que se entronizou

metáfora da verdade.

#2557

O vento periférico

um avesso que se veste

na rosa servida pela manhã.

Novos horizontes

Colho

na penumbra do outono

as sílabas sortilégio

o almirante miradouro

que levanta do céu embaciado

as cortinas vetustas

e sei

que o outono é promitente

de outonos que não cumprem

o selo da decadência

nele levitando novos horizontes. 

16.10.22

#2556

Obstinados

os poetas bebiam nas palavras

a lava que arrefecia o sangue.

15.10.22

Injustiças indocumentadas (30)

Quando chove

molha-tolos

só mesmo os mesmos

saem à rua.

#2555

Ouvir as nuvens

em seu sereno vagar

e extrair dos sonhos

os medos de atalaia.