Muito se teoriza
sobre a “bomba suja”
mas as únicas bombas limpas
que conheço
são as bombas de água.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Muito se teoriza
sobre a “bomba suja”
mas as únicas bombas limpas
que conheço
são as bombas de água.
O musgo
dava uma ideia
do Outono.
Do mesmo modo,
os cogumelos que medravam
livres
nos baldios à mercê
do sortilégio outonal.
Desta vez,
as estações
não estavam do avesso.
As pessoas
paradoxalmente
andavam tristonhas
refogadas em lume brando
pela chuva instalada há dias consecutivos
e a humidade bafa que emprestava
um ameno quase exótico
aos dias arrastados.
As pessoas
desprezam o bucolismo do Outono.
Não apreciam
a metamorfose das folhas das árvores
escrevendo o seu próprio óbito
na decadência selada pelo acobreado mágico.
Se pudessem
os desavindos com o Outono
saltavam a estação,
melhor dizendo,
saltavam as duas estações
que obrigam a abrigo e agasalho.
Os que desaprovam o Outono
não sabem
que o Outono não é o espelho da decadência;
é um amplexo que se ajuramenta
na renovação que encontra sedimento
na hibernação heurística.
Nós também hibernamos
sem ser um Outono
que nos desaprova.
As pessoas
invejam o Outono
porque não têm mão
na metamorfose
que é a promessa do Outono.
A lagosta é suada.
Pudera.
Com a água a ferver
que lagosta não acaba
suada?
Um dia
disse um poema
e cresci três centímetros.
No dia
a seguir
deixei que outro poema
se aninhasse no colo da manhã
e soube ser aprendiz
dos vultos selados no anonimato.
Dias
mais tarde
só me apetecia organizar
uma coletânea de poesia
diversa,
como diversa deve ser a poesia
enquanto mostruário da vida
em todas as suas conceções.
Tornei-me
ministro de uma coisa qualquer
que,
todavia,
não soube dizer qual,
num governo de um ministro só
(sem a importunação do chefe da hierarquia).
O feitiço da poesia
alcançara o sortilégio
de tornar ministro
um anarquista
que pensava não ter remédio.
Sendo a sátira um jogo de luxo
em que ao tabuleiro não eram admitidos
pobres de espírito
desenganados estivessem
os que fossem em demanda de legendas.
A sátira com legendas não é sátira
é a placa toponímica da indigência.
Dando o ouro da sátira como garantia
fica sempre a garantia
de nas imediações vegetarem
ou os que desconfiam
que a sátira disfarça uma linguagem cifrada
ou os que ficam aquém do sentido alegórico
das palavras em que se encerra a sátira.
Nunca se pode contentar
uns e outros.
Ouvimos
em surdina
os verbos esquecidos.
Lamentamos
em coro
as páginas desfalecidas.
Avisamos
o passado
para não ser vulto.
Arrefecemos
em segredo
a candeia do medo.
Habitamos
de corpo inteiro
o sangue crepuscular.
Admitimos
nas nossas mãos
as bocas impacientes.
Resolvemos
sem aviso prévio
as rugas que adejam no ocaso.
Desenhamos
em sílabas desabituadas
os labirintos que se antecipam.
Fintamos
com a destreza do Maradona
as trovoadas impertinentes.
Marcamos
nas costas do segredo
o lugar em Buenos Aires.
Não abro mão
da coroa de espinhos
da tabuada dos sete
do rigor do Correio da Manhã
da feijoada sem tripas
da literatura que é uma chaga
da prolixa fala dos aspirantes ao estrelato
dos negociantes e dos regentes em concubinato
da D. Graça da DGS
dos gurus condutores de almas
dos sebastiões em que o povo insiste
na diarreia verbal de S. Exa.
(o comentador incidental do reino)
dos fingimentos que se fingem a si mesmos
dos condutores que anularam o pisca
do incrível otimismo nacional
e do seu gémeo separado à nascença
o derrotismo federalizado
dos chicos-espertos (essas aves abundantes)
do ministro que ainda não percebeu que já não é
das mentiras que disfarçam as suas próprias farsas
dos agelastas inconsequentes
dos ignorantes que têm sempre uma opinião
dos eruditos do alto da sua pança farta
dos parasitas montados na ética republicana
nos aríetes das moralidades (sem exceção)
dos juízes em causa alheia
dos tribunícios sem palco que não seja o seu espelho
dos que tropeçam no conhecimento de tudo
(vulgo: tudólogos)
do Galamba
dos inovadores semânticos
dos tropistas das modas
da pandemia de influencers
do esgoto terminal que desagua no horizonte
da bandeira pútrida
e dos seus arautos sem saberem da sua decadência
e não abro mão
de um receituário de ironia.
Soubesse da missa a metade
– era em jeito de pretexto
que acendia a ladainha do arrependimento
à espera da absolvição
uma indulgência anónima
que seria um sibilino juntar das mãos
sobre o sono pacífico.
Mas o mar era atlântico
e estava uma tempestade das antigas
(os mais novos quase nem sabem
que a tempestade tem lugar no dicionário)
e, para o mais que contasse,
nem uma metade da missa sabia,
quanto mais o outro meio.
Parecia prometida
a noite como embaraço
e um sono tumultuoso
viajando pelas ondas cavadas
que são o chão próprio
dos arrependimentos sem serventia.
A noção vaga
da chuva torrencial
deu para confirmar
que os cavalinhos
foram todos retirados
para seus aposentos.
Risco a página do dia:
é como se fosse
um baldio
os ossos frios estalam
na embocadura da noite
deixando-a
muda.
À página do dia
sabotada pelo estrénuo movimento
em que se senta a angústia
outra suceder-se-á.
Do lugar em que me encontro
na posse do dia irremediável
não sei como será ornamentada
a página
que se segue.
Só sei que todos os dias
são um fio irremediável
assim que se encontram
com o seu saldo.
As páginas dos dias
quando andam da frente para trás
são um volume de contratempos
o lugar sem nome para
a rendição.
E se da matança não houver ouvidos
os sentidos rasgados desmaiam no caudal
talvez sangrando as palavras opacas,
este o graal consentido.
O ringue está sempre pronto:
os imprevidentes impérios
tutelam-se nas mangas dos burocratas
tornam-se adultos
no avesso das páginas remendadas.
As mentiras sobram nas goteiras
cobrem as vidraças com o orvalho demorado
e as pessoas avançam no meio das ilusões
apagadas
como sempre são as pessoas
no fingimento de serem as peças centrípetas
que sobem a palco
ao palco sem residência nem existência certa.
E as palavras
invisivelmente sangradas
escorrem no meio da podridão coeva.
Não se enfastiam
os mecenas do teatro dos fingimentos;
sabem que só são periscópios
enquanto os demais
forem corsários da grande mentira universal,
a mentira que se entronizou
metáfora da verdade.
Colho
na penumbra do outono
as sílabas sortilégio
o almirante miradouro
que levanta do céu embaciado
as cortinas vetustas
e sei
que o outono é promitente
de outonos que não cumprem
o selo da decadência
nele levitando novos horizontes.