3.2.23

#2672

Na rixa 

contra o tempo que corremos

pressentimos os escombros.

2.2.23

#2671

Participo

da dança com as palavras

a única dança que danço.

1.2.23

Solipsista

Era uma ideia eunuca

as núpcias averbadas no desmazelo

e os aspirantes a querubins

persistindo

no tirocínio qualificativo.

Mas veio uma tempestade:

os trovões calaram os verbos enfatuados

a chuva, diluviana,

colonizou a força braçal da ideia

era como se os deuses arrotassem o mau hálito

e nos desassossegassem.

Sobrou a lama

uma pantalha que já não era termal

e o estuário que se perdeu 

nos deslimites das margens arrombadas.

Nem assim os indefetíveis desmobilizaram.

Andamos com eles a tiracolo

como se fossem parasitas

e nós, 

ignorados pelos deuses

(assim ausentes),

pediríamos pássaros para o dorso

só para expulsarmos os parasitas.

#2670

Em anotação à margem

o ruído que anestesia o luar

e devolve à noite o seu lugar.

Injustiças indocumentadas (65)

Dizem

que é igual ao litro

e não sabem 

a que é o litro igual.

31.1.23

O corpo

O corpo 

com a sua maresia

atravessa o equador

não precisa de capitães

que o adestrem no astrolábio

o corpo que amanhece

no fuso desacertado

gutural. 

 

O corpo

consulta as dádivas

e respira entre o tojo tardio

penhor do sangue arrebatado

em óperas ditas de cor

enquanto avança 

na cordilheira.

#2669

Caminhavas

no verbo bucólico

do exílio que não viera 

a tempo.

30.1.23

Umas páginas avulsas de História do futuro

Pequena seria a incumbência 

se não fosse ao fado autorizado 

o estatuto de mito afivelado

estandarte dos prantos 

em que se debate uma terra inteira

tornando-a alagadiça

de tantas lágrimas que fecundam

um caudal de nostalgia

e o cimento da saudade 

 

– da saudade que devia ser desorgulho

de tanto meter a terra a olhar para trás

em vez de para a frente a fazer andar.

 

De tanta melancolia emparedada

tanta a angústia servente do fado

aviva-se, cristalino,

por que tristezas não pagam dívidas.

Não pagam

é só olhar para os inventários públicos

e pedir à estatística uns cálculos emprestados

 

(só para fazer jus

ao princípio geral da dívida).

 

E esta terra tem-nas

dívidas 

(e tristezas a rodos)

como se fosse uma piscina 

a hastear-se

mais alta do que o corpo

acima de todos os fingimentos

e dos pueris que se disfarçam de fidalgos

e são tão falidos como a pátria endividada 

 

– essa que é 

uma mátria 

avinagrada.

#2668

Sabias

que a subida era íngreme;

não sabias

que era um miradouro

o seu epílogo.

29.1.23

#2667

Os sonhos

são uns fratricidas

que empenham

o pesadelo do dia.

28.1.23

Injustiças indocumentadas (64)

O ministro da tutela

é que anda

pela trela.

#2666

Não será por falta de pedras

que os muros ficam adiados.

27.1.23

Partidário

Da pauta menor

o penhor da palavra fundadora

a tabuada sem vírgulas

obsessão sem ultraje

as bocas que ciciam os bons nomes

os nomes emparedados. 

Hoje

quando ainda há tempo para fugir

prometo o exílio para amanhã

quando o amanhã já puder ser

ontem. 

O exílio fica por conta

das boas intenções 

– que ninguém pode receber culpas

pela paternidade de um par de intenções. 

Já quanto à fusão

entre o hoje que se ajuramenta num amanhã

e o amanhã que passou a pertencer ao pretérito

não se espere indulgência. 

O compasso que nos rege

não perdoa o ultraje 

dos diferentes modos do tempo. 

A palavra 

é a cobertura

para todos estes descaminhos.

Ágora

Desempenhamos,

exercemos,

um papel 

– papeis múltiplos

no curso do tempo.

E nunca sabemos

onde apanhámos o papel

ou como ele nos aprisionou

se voou com o vento gentio

ou se veio do chão,

amarrotado.

#2665

Disfarcem as palavras

daquilo que não são

antes que as palavras

se disfarcem de arsenais.

 

[Definição de diplomacia]

26.1.23

#2664

Há sítios

que são um sempre

no sangue tatuados

a lava.

#2663

Um grama de perícia

só um grama, 

a esmo,

para esmagar a letargia.

25.1.23

Injustiças indocumentadas (63)

Um ponto de vista

é tão minimalista,

é só um ponto 

da vista.

Remoinho

A moldura

esquece o futuro

para não parecer gasta. 

 

O vidro

amanhece baço

oxalá estilhaçasse. 

 

O rosto

adulterado no precipício

esconde-se do espelho. 

 

A memória

antecipa a decadência

na vertigem incorruptível. 

 

As memórias

em herança deixadas

não reclamam toponímia. 

 

O nome

perdoa o passado

no olvido alfandegado. 

 

O nada

o todo completo

aviva-se no destempo.  

#2662

As muralhas

como fortuna

da solidão.

24.1.23

Seara

Lido com o lido

como se fosse inaugurar

uma estação que habilita a fruição

e deixo à pontuação

selecionada com esmero

a diferença no destinatário

os rodeios com as valsas de silêncio.

Escrevo como escrevo

o sangue arrefecendo nas mãos

o olhar exaltado

saltando as barreiras enquistadas

devolvendo à origem

travejamentos e códigos de conduta.

Ainda estou para saber

se escrevo como leio

ou se leio para refúgio da escrita.

#2661

Dou à falsa partida

o benefício da dúvida;

a indulgência converge

na vez do logro.

23.1.23

A seita e a coutada

As bocas famintas

bebem na ira da matilha. 

Não conhecem o perdão. 

Avançam,

destemidas,

no concurso da intransigência territorial. 

No territorial 

disfarçado de ideias

na parlamentar farsa da transigência. 

Na hora H

arregimentam o arsenal 

abocanham os tísicos pleiteantes 

na irredutível cerca de onde não têm fuga. 

Sem direito a contraditório

sem direito a julgamento

sem direito

a não ser a (sua) arbitrária lei de seita. 

A matilha

ostenta nas suas bocas saciadas

o sangue ainda morno das vítimas;

os mastins 

passeiam as barbas tingidas pelo sangue exaurido

dos que ousaram habitar outro mental lugar. 

Passeiam toda esta ostentação

na pose de triunfais algozes

ufanos no cercear da dissidência

funcionários diligentes da perdurável doutrina 

com simultânea exibição

para memória futura 

e aviso

aos candidatos dissidentes

do desfado que os espera

se insistirem ser

o que deles 

não se espera 

que sejam. 

#2660

Pior do que balas,

as palavras mortíferas.

22.1.23

O inventor

“(…) o vinco das tuas calças

está cheio de frio

é há quatro mil pessoas interessadas

nisso. (…)”

 

Mário de Cesariny, “De profundis amamus”.

 

Há poetas 

visionários

poetas que pressentiram

com cinquenta anos de avanço

as redes sociais.  

#2659

A meada

dissolvia-se entre os dedos

como se o norte

ficasse ausente. 

21.1.23

#2658

Das espadas,

a entorse.

O logro das palavras,

silenciadas.

20.1.23

Chessboard

The good, 

the bad 

and the ugly

or

the god, 

the bed 

and the truly.

#2657

Devia haver

um dever geral

de elogio

 

(só para desenjoar).

19.1.23

Beco com saída

O exílio que se esportula

a meias com o azedo da angústia

arremete contra o caudal iracundo

na floresta onde se arrumam os sonhos. 

 

Logro a sombra de uma tenaz

como se a uma figura mítica pertencesse

e aviso os deuses de plantão

que vendo dispendiosa a derrota que não intuo. 

 

Manda a tirania dos contratempos

o desmazelo dos fantasmas alinhados

contra os vidros baços que travam o olhar

em labirintos sem o medo metódico. 

 

O corpo suado não responde à lucidez

os versos são a cacofonia não reprovável

e a cada sismo da manhã

antepõe-se a harpa resgatada às cicatrizes.