19.6.23

#2818

Acusado de crueldade

respondeu

que foi apenas pessoa.

18.6.23

#2817

Sem que fossem as sombras

a decantação do medo

no verossímil refúgio

onde a vontade se faz alta.

17.6.23

#2816

O dia 

confessa a tontura da alma

à espera de absolvição.

16.6.23

Injustiças indocumentadas (120)

Os anjos não têm costas.

E essa

é a definição de incapacidade ao quadrado.

#2815

É desta maré avassaladora

eivada de imperativos irrecusáveis

que fujo com as forças que tenho.

15.6.23

Bonsai

O vulcão líquido atravessa os ossos

fica com um quinhão 

que amedronta os sismos qualificados

e em equações sem propósito joga-se o belo

jogam

os anfitriões que mostram as sílabas do pecado.

 

São os despojos que confecionam as paredes

sem que da estultícia dos sacerdotes

recolham as baias dos costumes.

Se não for pelas espadas argutas

que seja através dos colóquios 

onde se antecipam os títeres doravante.

 

Todos mostram as mãos

como se houvesse um mandado do tribunal

e as curvas retorcidas fossem prova dos párias.

Não interessa.

Todos combinaram

em silêncio

que as mãos ficam prostradas

assim como quem finge não saber o idioma

ou não ter faculdades mentais.

 

Às vezes

o húmus referencial subleva-se

e nem o odor pestilento

cobra as dívidas futuras

nem as sereias amestradas

coabitam com as fontes agelastas. 

#2814

Os verbos rimavam com

depostos todos os sem

que dantes eram embaraço.

14.6.23

#2813

O tesouro

voa com o vindouro

deixando o chão deserto.

13.6.23

Botânica

A flor bela

devora

a flor bala.

Antes fosse

a flor bola

lamenta a flora bala

quase a cair na boca

da flor bela.

Tudo

sob os auspícios

da flor bula.

Injustiças indocumentadas (119)

Tarde.

É tarde.

À tarde.

#2812

Atravessam as cores

atravessam os vulcões

com os nomes ensandecidos

com os olhos assestados no futuro.

12.6.23

Visto

De um nome não se diga 

indiferença. 

De um nome

sejam rasurados os poros 

em manhãs ausentes,

a diligência dos arrependidos. 

De um nome

fugido à escravatura 

urdindo os verbos crepusculares

enquanto se amacia o verbo do porvir. 

Dos nomes se digam

bem alto

as clepsidras luminosas

o verbo oponente num horizonte sem freios

os nomes

inteiros ou pela fração que calhar

em sucessivas marés sem algemas

os nomes que chamam por nomes

antes que sobre eles caia

o silêncio. 

#2811

Uma luz deposta

empresa crepúsculo

à pele faminta.

11.6.23

#2810

O circo desmontado

as feras hibernadas

a arraia-miúda

de olhos marejados.

10.6.23

#2809

Encorpas 

numa muralha de palavras

avenida que amanhece

numa clareira.

9.6.23

#2808

Nas fronteiras 

um marco geodésico

o passaporte 

para um sangue participado.

8.6.23

#2807

Esta marcha marcial

tem tanto de impante

como de parcial.

7.6.23

Marcial sem arsenais

Ascendo ao supor venal: 

transijo com os rumores,

a flácida matéria 

dos que deixaram de ser 

vitais,

convoco os leilões das almas

as almas em pessoa

ou por procuração

(também serve).

Amarro os braços

a uma camisa-de-forças

a jaula de onde não apetece fugir

mesmo que exposto como animal

e de mim se diga

que foi merecido.

Nunca tive medo da humilhação.

Nunca soube ser das dores da insídia.

Ouve-se o vento martírio

o ciciar das flores que crescem

um vírgula dois centímetros por hectare

o ritmo compassado da pele hirsuta

e sabemos

sem termos sido ensinados

que é como se um tsunami 

estivesse a bater à porta

e nós, 

impassíveis,

à espera

só à espera.

Injustiças indocumentadas (118)

Aprende 

que eu não duro 

para sempre;

aprende

que de mais duro crânio

não há paradeiro;

e aprende

que a vaidade

extingue-se

como a vida.

#2806

A eternidade

é uma vírgula

no passado.

6.6.23

Injustiças indocumentadas (117)

Traz água no bico

(mesmo que esteja uma seca

de bradar aos céus).

#2805

Ponto e vírgula,

antes de mudar o assunto

que ainda não ficou tudo dito

sobre a pendência.

5.6.23

A viabilidade da fala

No estuário da voz

as sílabas cortam o vento

e acertam a nomenclatura

desafiando a orfandade.

Não será nesta voz

que se aninha o protesto:

o silêncio não tem gramática

e ainda que sejam viáveis

os apóstatas da cacofonia

até as palavras sem fundo

se sobrepõem ao silêncio:

o silêncio

é o pressentimento da morte.

Injustiças indocumentadas (116)

Se de bronze são

pífias são as leis.

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (115)

Se há leis de bronze

por que não as há

de prata ou de ouro?

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (114)

Uma lei é melhor

só porque é de bronze?

#2804

A armadura disfarça as fraquezas

ajuda a mentir 

com a dignidade da sua ferrugem.

4.6.23

#2803

A jogo 

sem medo

a muda 

arraia-miúda.

3.6.23

#2802

Escolha uma das seguintes

para a personalidade do momento

 

burlesco

grotesco

picaresco

 

sem justificar a escolha.

2.6.23

Valsa do peregrino

Um peregrino

 

(parecia um peregrino,

ou talvez fosse um mendigo)

 

avança devagar

apoiado na estrada.

Arruma com os pés as flores 

deixadas em bandeja no chão

como se o chão tivesse suplicado

um tapete aromático.

O peregrino

ajeita os andrajos

 

(seria um mendigo?)

 

e murmura

com ar de poucos amigos

o que ninguém consegue retirar

ao silêncio.

O peregrino

participa a solidão:

há quanto tempo

não fala com pessoas?

e esta interrogação

arbitrária como a suposição

só é válida para quem a formula.

Ninguém pode dizer ao certo

o que vai por dentro do peregrino

 

(e também não por dentro do mendigo).

 

A fivela à cintura descaiu

e o peregrino acerta-a:

não quer ficar

com as calças na mão,

o mendigo

 

(ou será o peregrino?).