A manhã desce sobre o sonho
os versos regressam
à impureza inicial.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
As vozes urdem o silêncio medonho
espreitam pelos poros das laranjas
como se por eles inventassem escotilhas
e condenassem o mar a ser um cais.
O silêncio já não é medonho
ao concorrerem as vozes gongóricas
um certame impraticável
onde todos falam
uns em cima dos outros
outros por cima de outros mais
num emaranhado de palavras demencial.
O silêncio é medicinal
quando deixa de ser medonho
e os mecenas
desfraldam os seus melhores tapetes
para receberem a gramática do silêncio.
O silêncio
recebeu o prémio Nobel
da igualdade.
Vamos
ao estado da nação
– ou
ao estado da noção
ou à noção do Estado.
Não seja pormenor a denúncia
os despojos não aceitam dádiva
sem o fermento que valida a demanda
e o exílio não conta para o currículo.
Amanhece o diadema
em conspirações avalizadas por druidas
não se consuma a poção macerada
ou os ossos puídos derruem.
O espelho fortuito desaprova a privação;
esperam-nos
comboios de mel
uma contígua alfinetada na angústia
os favos em forma de espada
e a boca que aguenta a obturação do medo.
Levamos os remos ao rosto furtivo.
As arcadas desacertam a baunilha do dia.
Atemorizados
os abutres fogem da carne vivaz
o sangue retesado engana-os por mal:
estamos a salvo.
Fala-se de vingança
de brio e de destemperança
dos bolos artesanais que avivam a lembrança
sem ser sempre esta usança.
Os cardeais não são apenas pontos.
Servem-se, sumos,
que matar a sede não se recusa.
Já a vagem do dia:
para ser espremida até ao magma
até ficar apenas a casca derruída
o farol que dispensa
instrumentos de navegação.
Os remos não se escondem das mãos.
São o seu arnês
nas águas agitadas que fogem da gastronomia.
Lemos os remos
somos agiotas dos temperos
inventamos os compêndios
e agitamos os sentidos.
Calígula ou barítono,
a hesitação agoniante
antes de responder à pergunta
“o que queres ser em crescido”.
Queria um dólar
o câmbio fortaleza
e nem sabia
que no lugar em que estava
o dólar não tinha serventia
valia tanto
como uma nota de monopólio
ou a palavra jurada dos solenes coveiros
que condenavam a mátria
à irremediável dissolução do futuro.
Dessas juras solenizadas
não se extraía em memória futura
o saldo em mitomania
– e ninguém se lamentava
ninguém queria contas prestadas.
Invocassem não ser o caso
sobrava
aos mandantes hasteados com o aval popular
a imperícia;
tal como
a do dólar naquela mátria
que não sabia da serventia do dólar
a tão glosada nota verde
ali,
estranha como idioma não aprendido.
Um,
armado até aos dentes
vai perder a peleja
porque o outro,
armado até aos olhos,
lhe passa a perna
(e os dois, talvez,
a caminho da autofagia).
Perdeu a cabeça.
A quem a encontrar
solicita-se devolução
aos perdidos e achados.
Sabes do crepúsculo
o sabre luminar de que é feita
a bainha do dia
o lampejo de mediania que é suficiente
sabes
do furacão circuncidado
a ametista escondida no bolso
o microscópio por onde arde a angústia
sabes
de que matéria é feita a fala continua
nos antebraços do esqueleto ancestral
se ruínas são elevadas a património armilar?
O sol de julho
é como as fornalhas
onde se funde o aço:
se houvesse metáfora do inferno
o Verão que nos tortura
seria a metáfora entre todas.
(Não se confirma
que inferno
rima com Inverno.)
As facas em descanso
deixam a pele na letargia
os acasos justapostos pelo ocaso da memória
e nada se credita à devoção
o amor tem os braços de um polvo
para não fugir nos interstícios do sono.
Esta é a matéria válida
o desassombro
das vozes que murmuram o paladar da alma
desarrumando os conspiradores
os que erguem
insatisfatoriamente
barragens elefantes brancos
e mesmo assim o caudal abraça-se
ao rio restante.
Tatuada a astúcia em forma de verbo
o corpo é um santuário à prova de derrotas
sem haver
quem o consiga desfeitear.
Podem ser medonhas as ondas
temível a lava de todos os vulcões por junto
podem todos os olhares açambarcar a tirania
deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade
podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas
e os pederastas da estultícia desfilar
na passerelle
ostentando a sua indigência
podem os deuses,
adormecidos,
esquecer-se da bondade
que os padrinhos seculares
descombinam do olvido
derruídos pelo esplendoroso labirinto
onde se terçam as solenes proclamações
o desejo que torna árida a aridez
e devolve ao avesso à fazenda legítima.
Os cabelos
cavalgam o dorso das ondas
dir-se-ia
amaciam o horizonte atrás delas deitado
como se o outro lado do mar
estivesse à distância de duas braçadas.
Que ninguém proteste a impossibilidade.
O seu antídoto
é a vontade arrematada
contra a indulgência
que se disfarça de medo.
A saliva foge das cicatrizes
o remorso incendeia-se na manhã
os sonhos são o prolongamento do medo
as sílabas obedecem ao quociente
para que nada fique
sem raiz quadrada.
O pelourinho
foi demitido da praça
os inquisidores estão nus e ao deus-dará
e já nem as viúvas lamentam oxalás.
Honestos
os chás orientais com rótulo disfarçado
e desonestos
os vinhos do Porto made in África do Sul.
Os reclusos estão viciados na biblioteca
e os catedráticos delinquem às escondidas.
E tudo, ou quase,
virado do avesso
como se do avesso
as coisas perdessem o avesso
e se tornassem
coisas.