27.7.23

Analgésico

Cobrisse todo o ouro

o mar 

sistematicamente

 

coibisse a humanidade

de mutilar a alma

ilegitimamente

 

contasse todas as lágrimas

a pele

desmortificando o dia

militantemente

 

cobrasse o rédito íntegro

sem a avareza dos luditas

a luva sortílega

avisadamente

 

cortasse toda a neve tardia

as alvíssaras

coloquialmente

sentadas sobre o soberano

 

sem trono.

#2858

De acordo com o museu

os anjos precisam de dieta.

[Parece antiparlamentarismo primário, mas só parece]

A assembleia

é para

(nos fazer)

tolos.

É a barca dos fingimentos

e nós os idiotas lerdos

fabricando fingidores.

26.7.23

Talião não era boa pessoa

Dente por dente

vestimos a selva

e no lugar de um vulcão

no lugar de museus

e das grandes obras da humanidade

damos vida ao rosto da morte

à selvajaria de tirar as vidas do palco

só porque a vingança

faz as vezes 

de lei.

Do dente ao dente

passamos do olho ao olho

até sermos todos

obreiros da cegueira

e já nem sabermos

onde estão os olhos outros.

Injustiças indocumentadas (142)

Alguém sabe

a que sabem 

as águas de bacalhau?

#2857

Um murmúrio

deita-se na pele

verte o eco da manhã

e tudo ganha paradeiro. 

25.7.23

Ninguém diz nada

Tingidas as lágrimas

na baía dos acasos,

na vez 

dos destroços de um naufrágio

que adulteram o areal. 

Dos náufragos

não há notícia;

 

se foram doados ao mar

deles 

será a sepultura maior

um epitáfio com o salitre 

como verbo.

Injustiças indocumentadas (141)

O Restelo

não tem culpa

dos velhos que lá moram.

#2856

Dou de caução

o magma que eviscera

o ónus da angústia. 

24.7.23

O aparato da lua não se mede aos luares

Pelo meio do luar

as facas arquivadas no arnês

e só o luar

o bocejo apetecível da lua com boca grande

e uma pequena verruga numa das orelhas

afinal

apenas um piercing que a lua apostou.

A lua nunca diz adeus:

anoitece nas mãos gradas

e promete ser viável

enquanto o mundo se entretém

a dar umas voltas sobre si,

a transpirar saudades da lua.

Há quem diga

que a Terra devia ser o satélite da lua.

#2855

Um fio de medo

sobre o orvalho:

a manhã 

não se intimida.

23.7.23

#2854

O lamento sepulcral 

– ou luto fulcral – 

dádiva 

de uma evasão espectral.

22.7.23

#2853

Sitiados 

pelo sentimento precário

à espera 

da voz centrípeta. 

21.7.23

#2852

A manhã desce sobre o sonho

os versos regressam 

à impureza inicial.

20.7.23

Anatomia do silêncio

As vozes urdem o silêncio medonho

espreitam pelos poros das laranjas

como se por eles inventassem escotilhas

e condenassem o mar a ser um cais.

 

O silêncio já não é medonho

ao concorrerem as vozes gongóricas

um certame impraticável 

onde todos falam

uns em cima dos outros

outros por cima de outros mais

num emaranhado de palavras demencial.


O silêncio é medicinal

quando deixa de ser medonho

e os mecenas 

desfraldam os seus melhores tapetes

para receberem a gramática do silêncio.


O silêncio

recebeu o prémio Nobel

da igualdade.  

Injustiças indocumentadas (140)

Vamos 

ao estado da nação 

– ou 

ao estado da noção

ou à noção do Estado.

Injustiças indocumentadas (139)

Passagem de nível.

Passagem

de 

nível.

Com nível.

#2851

Não risco do futuro

o dedo diligente

no estuário

onde o futuro se congemina.

19.7.23

Trovoada seca

Não seja pormenor a denúncia

os despojos não aceitam dádiva

sem o fermento que valida a demanda

e o exílio não conta para o currículo.

Amanhece o diadema

em conspirações avalizadas por druidas

não se consuma a poção macerada

ou os ossos puídos derruem.

O espelho fortuito desaprova a privação;

esperam-nos

comboios de mel

uma contígua alfinetada na angústia

os favos em forma de espada 

e a boca que aguenta a obturação do medo.

#2850

Aliso o estuário

onde se avistam as palavras

o dorso caiado

não adormece no penhor do luar.

18.7.23

Neopantagruélico

Levamos os remos ao rosto furtivo.

As arcadas desacertam a baunilha do dia.

Atemorizados

os abutres fogem da carne vivaz

o sangue retesado engana-os por mal:

estamos a salvo.

 

Fala-se de vingança

de brio e de destemperança

dos bolos artesanais que avivam a lembrança

sem ser sempre esta usança.

 

Os cardeais não são apenas pontos.

Servem-se, sumos,

que matar a sede não se recusa.

 

Já a vagem do dia:

para ser espremida até ao magma

até ficar apenas a casca derruída

o farol que dispensa 

instrumentos de navegação.

 

Os remos não se escondem das mãos.

São o seu arnês

nas águas agitadas que fogem da gastronomia.

 

Lemos os remos

somos agiotas dos temperos

inventamos os compêndios

e agitamos os sentidos.

Injustiças indocumentadas (138)

Matar a sede

não é homicídio.

#2849

Calígula ou barítono,

a hesitação agoniante

antes de responder à pergunta

“o que queres ser em crescido”.

17.7.23

Dólar, dólar

Queria um dólar

o câmbio fortaleza

e nem sabia

que no lugar em que estava

o dólar não tinha serventia

valia tanto

como uma nota de monopólio

ou a palavra jurada dos solenes coveiros 

que condenavam a mátria

à irremediável dissolução do futuro.

Dessas juras solenizadas

não se extraía em memória futura

o saldo em mitomania 

– e ninguém se lamentava

ninguém queria contas prestadas.

Invocassem não ser o caso

sobrava

aos mandantes hasteados com o aval popular

a imperícia;

tal como 

a do dólar naquela mátria

que não sabia da serventia do dólar

a tão glosada nota verde

ali,

estranha como idioma não aprendido.

Injustiças indocumentadas (137)

Um, 

armado até aos dentes

vai perder a peleja

porque o outro,

armado até aos olhos,

lhe passa a perna

(e os dois, talvez,

a caminho da autofagia).

#2848

Não se escureça o momento

a censura 

não tem pernas para andar.

Injustiças indocumentadas (136)

Perdeu a cabeça.

A quem a encontrar

solicita-se devolução

aos perdidos e achados.

16.7.23

#2847

Precisas de molduras

se queres aprender

a transgressão das fronteiras.

15.7.23

#2846

Pergunta 

ao futuro

e fica 

à espera.

14.7.23

Injustiças indocumentadas (135)

Contra os karmas

murchar, 

murchar.