Agita a colmeia
pode ser que não seja mel
a colheita às tuas mãos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Como sangue de framboesas maduras
as pálpebras falam no estreito da mentira
acostumam-se à imprevidência dos lobos
e deixam atrás o insensato esgar dos lúcidos.
De vez em quando
as consoantes gritam o verbo duro
libertam-se da azáfama das noites desertas
e emprestam disfarces para quem nunca foi
farsa.
O ouro está escondido na página 36,
segredou a divindade empossada,
e os cães vadios que passavam
subitamente mataram a fome.
Não
não me escondo dos espinhos das amoreiras
trago comigo estátuas dilaceradas
e tatuagens que ainda procuram santuário.
Dessem à boca
alcatrão
já que à ilharga
sobra o silêncio
oxalá povoassem de lucidez
um pouco do adro mental
e por contágio
um arnês os libertasse
da indigência.
Coabitasse a medida
com o estatuto encamisado
soubesse a boca
ser modesta
e o juízo não se afivelasse
por excesso
para diplomática ser
a contabilidade
e de contumácia das estimativas
não se poder falar.
Enchessem-se de penas
talvez cuspidas a alcatrão
para não se esconderem
da desvergonha.
Uma pilha de nervos
tem de ser
de lítio.
[Poema circunstancial:
ou de como o lítio
mandou um governo abaixo.]
Tenho nas mãos
as flores sem sangue.
Tenho aos pés
as vozes párias.
Trago no olhar
os medos extintos.
Trago na memória
as manhãs vagarosas.
Tenho
no magma da alma
as palavras armadura.
Tenho
no lugar da maresia
a nitescência das mãos inaugurais.
Tiraram as dioptrias
às entranhas possivelmente podres
de um punhado de mandantes.
Depois,
ligaram as sinapses
para logo estimarem
o pecadilho com perna curta
entre o lodo em que vicejam
e as ausentes lições de ética
(como não, de sim ter começado
por Aristóteles).
Só que este é um lugar dezembro
não se organizam funerais políticos
que a casta adeja sobre as leis
e arrota ostensivamente
contra o prelúdio da ética.
Em vez
de se arrotear um janeiro reparador
iremos em velocidade de cruzeiro
a caminho de um dezembro renovado.
A culpa
ao contrário do que por aí se diz,
só morte solteira
se nos formos seus cúmplices.
(Post scriptum: tendo sido escrito antes da demissão de um primeiro-ministro, fica por reconhecer que foi extemporâneo o poema.)
Nos despojos
a tutela da tempestade
o árido silêncio do medo
ou apenas
a exaltação dos elementos
um aval da imoderação
em sucessivas marés-mais-que-vivas
ou o beijo da morte
disfarçado de beleza incontinente
e nós,
colhidos pelo feitiço,
juntamos à tela
a gramática do exagero
o fingimento do medo
a atribulada desconfiança da matéria
contra as juras dos mastins
contra a indelével marca do tempo
os escombros esculpidos na maresia
em farsas atestadas pelos artesãos.
Não anotamos o vocabulário
que de tanto uso
se extingue.
Deixamos
que o medo soluce
convulsivo
como se fosse
o seu próprio medo
e metemos pelo meio o arnês
o fiel depositário dos outros.
Os pais das tempestades
são aqueles que as batizam
com nome de gente.
Assobiavam
todos aperaltados
os embaixadores enfatuados
o idioma franco balbuciado
à medida dos vermutes bebericados.
Apareceu uma quadrilha
a caminho de um assalto.
Ficaram todos
(embaixadores e meliantes)
com o movimento entre parêntesis.
Caiu uma chuvada torrencial
e todos se refugiaram
numa paragem do autocarro.
Horas depois
um dos meliantes deu pela falta
de uns diamantes desviados ao legítimo.
Lembrou-se
do estalão da divina justiça
e de um perdão de mil anos
amaldiçoando a chuva que torrencial
caiu.
Continência ao general
que o general é incontinente.
Potência ao general
que o general é impotente.
Pela hora da morte.
Pela
a hora da morte.
Apela à hora
da morte.
Há hora da morte.
Corsários que deixam o mar suado
cruzados que sobem as árvores imodestas
sacerdotes que sepultam o pecado
artesãos descuidados com o véu lúcido
eruditos a estagiar numa taberna viciosa
beligerantes castrados nas desoras da vida
aspirantes demitidos no ato
cozinheiros que devolvem segredos ao mar
procuradores sem mandato desovado
mecenas sem latitude material
tiranetes condenados à solidão
cúmplices adestrados no contorcionismo
estetas mergulhados na feiura
vozes que se servem do silêncio
boémios extasiados com a manhã baça
mendigos amesendados em hotéis superiores
capitalistas a provarem a suína fatiota
ácaros militantes que dispensam o labor
treinadores de almas que empenham o unto réptil
distraídos a beberem o dia pelo artelho da bota
primeiros-ministros que parecem quintos
rececionistas que mendigam bondade
avarentos que escondem gorjetas puídas
sonhadores que apanham um avião intercontinental
generais que fazem a incontinência.
Que acordamos dizer
na estiva da maré
– que palavras
juntamos com as mãos
à servidão de que nos isentamos?
Dei sementes ao lago furtivo
os nenúfares atravessavam a margem
e do idílico fazia novelos em forma de luar.
De cada vez que o cimento pedia corda
regressava aos atávicos humores
os costumes esconjurados
em meia página de sono.
Depois
em aldeolas erráticas
subia o pulso fraco e fazia-me cordilheira
um anjo sem coroa nem domínio
fogo haurido no pedestal das vozes híbridas.
Se não pudesse saber a manhã das palavras
fugia de mim por dentro da carne tingida
o dorso curvado nas escadas desarrumadas
como se em bocejos se contivessem
as juras que dão cor ao mundo.
Todavia
as bandeiras avulsas sossegavam a mentira:
era preciso contar mentiras
até às próprias mentiras
em nome próprio ou na procuração arregaçada
para que ninguém fique em detrimento
para que ninguém
ficasse em dívida à mentira
e ela seja o trono que a todos democratiza.
Não se foge da penumbra altiva
os estilhaços advertem os sobressaltos
em contínuo
na miragem das palavras acertadas:
desenganem-se
os colonos do amanhã
os feitores de quimeras por empunhar
os embaixadores do obsoleto
os párias que perderam povoamento:
o amanhã espera a conjugação atempada
e será a vez dos apocalipses verem desmentida
a data.
Em vez de sermos
exílio por fora.
Antes de sermos
matéria puída
no avesso do tempo.
A tempo de sermos
alguém
depois dos fantasmas.