10.11.23

#2959

Agita a colmeia

pode ser que não seja mel

a colheita às tuas mãos.

Injustiças indocumentadas (229)

Estrela,

da amadora.

9.11.23

Injustiças indocumentadas (228)

Besta negra 

– ainda se pode 

dizer?

Os escombros, não

Como sangue de framboesas maduras

as pálpebras falam no estreito da mentira

acostumam-se à imprevidência dos lobos

e deixam atrás o insensato esgar dos lúcidos. 

 

De vez em quando

as consoantes gritam o verbo duro

libertam-se da azáfama das noites desertas

e emprestam disfarces para quem nunca foi

farsa. 

 

O ouro está escondido na página 36,

segredou a divindade empossada, 

e os cães vadios que passavam

subitamente mataram a fome.

 

Não

não me escondo dos espinhos das amoreiras

trago comigo estátuas dilaceradas

e tatuagens que ainda procuram santuário.

#2958

Deixa 

que as pétalas avulsas

assentem na pele 

com a leveza da neve.

8.11.23

Monumental

Dessem à boca

alcatrão

já que à ilharga

sobra o silêncio

oxalá povoassem de lucidez

um pouco do adro mental

e por contágio

um arnês os libertasse

da indigência. 

Coabitasse a medida

com o estatuto encamisado

soubesse a boca 

ser modesta

e o juízo não se afivelasse

por excesso

para diplomática ser

a contabilidade

e de contumácia das estimativas

não se poder falar. 

Enchessem-se de penas

talvez cuspidas a alcatrão

para não se esconderem

da desvergonha.

Injustiças indocumentadas (227)

Uma pilha de nervos

tem de ser

de lítio.

 

[Poema circunstancial:

ou de como o lítio

mandou um governo abaixo.]

Paralelo 66

Tenho nas mãos

as flores sem sangue. 

 

Tenho aos pés

as vozes párias.

 

Trago no olhar

os medos extintos.

 

Trago na memória

as manhãs vagarosas.

 

Tenho 

no magma da alma

as palavras armadura.

 

Tenho

no lugar da maresia

a nitescência das mãos inaugurais.

#2957

Se não forem as cortinas

é a paisagem de peito aberto

dolorosamente capilar.

Injustiças indocumentadas (226)

mea culpa

não passa

de culpa meã.

7.11.23

Passarinhos na gaiola

Tiraram as dioptrias

às entranhas possivelmente podres

de um punhado de mandantes. 

Depois, 

ligaram as sinapses

para logo estimarem

o pecadilho com perna curta

entre o lodo em que vicejam

e as ausentes lições de ética

 

(como não, de sim ter começado

por Aristóteles).

 

Só que este é um lugar dezembro

não se organizam funerais políticos

que a casta adeja sobre as leis

e arrota ostensivamente

contra o prelúdio da ética. 

Em vez 

de se arrotear um janeiro reparador

iremos em velocidade de cruzeiro

a caminho de um dezembro renovado. 

 

A culpa

ao contrário do que por aí se diz,

só morte solteira

se nos formos seus cúmplices. 

 

(Post scriptum: tendo sido escrito antes da demissão de um primeiro-ministro, fica por reconhecer que foi extemporâneo o poema.)

Injustiças indocumentadas (225)

A crise

que pague

os pobres.

#2956

Apeado da glória

pranteando

a ausência de chão

sabia ao menos 

de um horizonte a despontar.

6.11.23

Fungível

Nos despojos

a tutela da tempestade

o árido silêncio do medo

ou apenas

a exaltação dos elementos

um aval da imoderação

em sucessivas marés-mais-que-vivas

ou o beijo da morte

disfarçado de beleza incontinente

e nós, 

colhidos pelo feitiço,

juntamos à tela

a gramática do exagero

o fingimento do medo

a atribulada desconfiança da matéria

contra as juras dos mastins

contra a indelével marca do tempo

os escombros esculpidos na maresia

em farsas atestadas pelos artesãos. 

Não anotamos o vocabulário

que de tanto uso 

se extingue. 

Deixamos 

que o medo soluce 

convulsivo 

como se fosse 

o seu próprio medo

e metemos pelo meio o arnês

o fiel depositário dos outros.

Injustiças indocumentadas (224)

Da crueldade

não se diga 

que rima com requinte.

#2955

Diziam do lavagante

o mesmo que (do preço) do ouro,

depois de despida a armadura.

5.11.23

#2954

Não exiles 

as impossibilidades.

A tua voz 

prospera à sua conta.

Injustiças indocumentadas (223)

Os pais das tempestades 

são aqueles que as batizam 

com nome de gente.

4.11.23

#2953

Não fiz nada 

e já fiz tudo.

3.11.23

Os embaixadores e os meliantes

Assobiavam

todos aperaltados

os embaixadores enfatuados

o idioma franco balbuciado

à medida dos vermutes bebericados.

Apareceu uma quadrilha

a caminho de um assalto.

Ficaram todos

(embaixadores e meliantes)

com o movimento entre parêntesis.

Caiu uma chuvada torrencial

e todos se refugiaram 

numa paragem do autocarro.

Horas depois

um dos meliantes deu pela falta

de uns diamantes desviados ao legítimo.

Lembrou-se

do estalão da divina justiça

e de um perdão de mil anos

amaldiçoando a chuva que torrencial

caiu.

Injustiças indocumentadas (222)

Continência ao general

que o general é incontinente.

Potência ao general

que o general é impotente.

Injustiças indocumentadas (221)

Pela hora da morte.

Pela 

a hora da morte.

Apela à hora 

da morte.

Há hora da morte.

#2952

Trespasso 

os provérbios em barda 

deito-me 

com a indigência de origem protegida.

2.11.23

Sociologia de algibeira

Corsários que deixam o mar suado

cruzados que sobem as árvores imodestas

sacerdotes que sepultam o pecado

artesãos descuidados com o véu lúcido

eruditos a estagiar numa taberna viciosa

beligerantes castrados nas desoras da vida

aspirantes demitidos no ato

cozinheiros que devolvem segredos ao mar

procuradores sem mandato desovado

mecenas sem latitude material

tiranetes condenados à solidão

cúmplices adestrados no contorcionismo

estetas mergulhados na feiura

vozes que se servem do silêncio

boémios extasiados com a manhã baça

mendigos amesendados em hotéis superiores

capitalistas a provarem a suína fatiota

ácaros militantes que dispensam o labor

treinadores de almas que empenham o unto réptil 

distraídos a beberem o dia pelo artelho da bota

primeiros-ministros que parecem quintos

rececionistas que mendigam bondade

avarentos que escondem gorjetas puídas

sonhadores que apanham um avião intercontinental

generais que fazem a incontinência.

#2951

Protestam

com rugidos pueris

a sua voz percutida no desdiz 

de quem os impugna. 

1.11.23

Injustiças indocumentadas (220)

A partida de desempate

passou a ser a branca.

#2950

Que acordamos dizer

na estiva da maré 

– que palavras 

juntamos com as mãos

à servidão de que nos isentamos?

31.10.23

As fragas

Dei sementes ao lago furtivo

os nenúfares atravessavam a margem

e do idílico fazia novelos em forma de luar. 

De cada vez que o cimento pedia corda

regressava aos atávicos humores

os costumes esconjurados 

em meia página de sono. 

Depois

em aldeolas erráticas

subia o pulso fraco e fazia-me cordilheira

um anjo sem coroa nem domínio

fogo haurido no pedestal das vozes híbridas. 

Se não pudesse saber a manhã das palavras

fugia de mim por dentro da carne tingida

o dorso curvado nas escadas desarrumadas

como se em bocejos se contivessem 

as juras que dão cor ao mundo. 

Todavia

as bandeiras avulsas sossegavam a mentira:

era preciso contar mentiras

até às próprias mentiras

em nome próprio ou na procuração arregaçada

para que ninguém fique em detrimento

para que ninguém

ficasse em dívida à mentira

e ela seja o trono que a todos democratiza. 

Não se foge da penumbra altiva

os estilhaços advertem os sobressaltos 

em contínuo

na miragem das palavras acertadas:

desenganem-se

os colonos do amanhã

os feitores de quimeras por empunhar

os embaixadores do obsoleto

os párias que perderam povoamento:

o amanhã espera a conjugação atempada

e será a vez dos apocalipses verem desmentida

a data.

Cronómetro

Em vez de sermos 

exílio por fora. 

 

Antes de sermos 

matéria puída 

no avesso do tempo. 

 

A tempo de sermos 

alguém

depois dos fantasmas.

#2949

Sôfrego

o agarrar da manhã

com as duas férreas mãos

antes que venha de tarde

escarninha.