14.11.23

#2964

Em forma de marco geodésico

sem saber se 

a paisagem intercedia por ele

ou era ele de atalaia à paisagem.

13.11.23

Fogo posto

A fogueira crepita

num fogo 

posto à venda

por nada

por um

fogo posto

que armadilha 

as mãos voluntárias

em tudo um nada

crestadas

por defeito de vontade

de uma vontade por excesso.

A fogueira crepita;

valha 

ao menos

a interdição do Inverno.

#2963

Os socalcos descem até ao rio

são as mãos artesãs

em nome da natureza.

12.11.23

Injustiças indocumentadas (232)

Fora de casa

(mas) 

em trajes maiores.

Injustiças indocumentadas (231)

Desgraça:

desengraça

diz, graça.

#2962

Esta é a mão moratória

a demão que pede vindouros

o presente caiado

com o pejo dos cajados 

sentenciados. 

Avinagrado

A tabela térmica

respira a febre da pele:

as erupções devolvem luz à noite

e não se fale de eclipses

não desembaracem o lagar

onde as uvas fermentam de véspera.

É pelas varandas que as falas se juntam

as casas são uma prisão arrematada

lúgubres, sombrios espasmos de rotina.

 

As pessoas

habituam-se aos hábitos.

 

Não se demovem 

por luares nómadas

ou lances ousados 

que viram o jogo do avesso

os génios sempre adiados.

Só querem a usança

refeições à hora marcada

a purulenta televisão

onde desfilam malquerenças 

e personagens escaninhas. 

O fumo ao longe

não é um atestado de cemitério:

o vento assina as árvores

a durável concessão dos homens

máquinas em barda

a lava da civilização

como se contássemos os quilos de ferrugem

no inventário da abastança. 

 

Não se interpõem os deuses

que também dormem. 

Quisessem mediadores,

encontrá-los-iam nas medas avulsas

a meação que junta as mãos separadas.

11.11.23

#2961

O ogre destila babugem

do seu úbere miasmático

e há uma turba que nele bebe.

Injustiças indocumentadas (230)

A última hora

está sempre à espera 

da próxima hora.

10.11.23

#2960

O Outono pornográfico

que rouba as folhas às árvores

e deixa-as nuas 

ao olhar tumultuoso.

#2959

Agita a colmeia

pode ser que não seja mel

a colheita às tuas mãos.

Injustiças indocumentadas (229)

Estrela,

da amadora.

9.11.23

Injustiças indocumentadas (228)

Besta negra 

– ainda se pode 

dizer?

Os escombros, não

Como sangue de framboesas maduras

as pálpebras falam no estreito da mentira

acostumam-se à imprevidência dos lobos

e deixam atrás o insensato esgar dos lúcidos. 

 

De vez em quando

as consoantes gritam o verbo duro

libertam-se da azáfama das noites desertas

e emprestam disfarces para quem nunca foi

farsa. 

 

O ouro está escondido na página 36,

segredou a divindade empossada, 

e os cães vadios que passavam

subitamente mataram a fome.

 

Não

não me escondo dos espinhos das amoreiras

trago comigo estátuas dilaceradas

e tatuagens que ainda procuram santuário.

#2958

Deixa 

que as pétalas avulsas

assentem na pele 

com a leveza da neve.

8.11.23

Monumental

Dessem à boca

alcatrão

já que à ilharga

sobra o silêncio

oxalá povoassem de lucidez

um pouco do adro mental

e por contágio

um arnês os libertasse

da indigência. 

Coabitasse a medida

com o estatuto encamisado

soubesse a boca 

ser modesta

e o juízo não se afivelasse

por excesso

para diplomática ser

a contabilidade

e de contumácia das estimativas

não se poder falar. 

Enchessem-se de penas

talvez cuspidas a alcatrão

para não se esconderem

da desvergonha.

Injustiças indocumentadas (227)

Uma pilha de nervos

tem de ser

de lítio.

 

[Poema circunstancial:

ou de como o lítio

mandou um governo abaixo.]

Paralelo 66

Tenho nas mãos

as flores sem sangue. 

 

Tenho aos pés

as vozes párias.

 

Trago no olhar

os medos extintos.

 

Trago na memória

as manhãs vagarosas.

 

Tenho 

no magma da alma

as palavras armadura.

 

Tenho

no lugar da maresia

a nitescência das mãos inaugurais.

#2957

Se não forem as cortinas

é a paisagem de peito aberto

dolorosamente capilar.

Injustiças indocumentadas (226)

mea culpa

não passa

de culpa meã.

7.11.23

Passarinhos na gaiola

Tiraram as dioptrias

às entranhas possivelmente podres

de um punhado de mandantes. 

Depois, 

ligaram as sinapses

para logo estimarem

o pecadilho com perna curta

entre o lodo em que vicejam

e as ausentes lições de ética

 

(como não, de sim ter começado

por Aristóteles).

 

Só que este é um lugar dezembro

não se organizam funerais políticos

que a casta adeja sobre as leis

e arrota ostensivamente

contra o prelúdio da ética. 

Em vez 

de se arrotear um janeiro reparador

iremos em velocidade de cruzeiro

a caminho de um dezembro renovado. 

 

A culpa

ao contrário do que por aí se diz,

só morte solteira

se nos formos seus cúmplices. 

 

(Post scriptum: tendo sido escrito antes da demissão de um primeiro-ministro, fica por reconhecer que foi extemporâneo o poema.)

Injustiças indocumentadas (225)

A crise

que pague

os pobres.

#2956

Apeado da glória

pranteando

a ausência de chão

sabia ao menos 

de um horizonte a despontar.

6.11.23

Fungível

Nos despojos

a tutela da tempestade

o árido silêncio do medo

ou apenas

a exaltação dos elementos

um aval da imoderação

em sucessivas marés-mais-que-vivas

ou o beijo da morte

disfarçado de beleza incontinente

e nós, 

colhidos pelo feitiço,

juntamos à tela

a gramática do exagero

o fingimento do medo

a atribulada desconfiança da matéria

contra as juras dos mastins

contra a indelével marca do tempo

os escombros esculpidos na maresia

em farsas atestadas pelos artesãos. 

Não anotamos o vocabulário

que de tanto uso 

se extingue. 

Deixamos 

que o medo soluce 

convulsivo 

como se fosse 

o seu próprio medo

e metemos pelo meio o arnês

o fiel depositário dos outros.

Injustiças indocumentadas (224)

Da crueldade

não se diga 

que rima com requinte.

#2955

Diziam do lavagante

o mesmo que (do preço) do ouro,

depois de despida a armadura.

5.11.23

#2954

Não exiles 

as impossibilidades.

A tua voz 

prospera à sua conta.

Injustiças indocumentadas (223)

Os pais das tempestades 

são aqueles que as batizam 

com nome de gente.

4.11.23

#2953

Não fiz nada 

e já fiz tudo.

3.11.23

Os embaixadores e os meliantes

Assobiavam

todos aperaltados

os embaixadores enfatuados

o idioma franco balbuciado

à medida dos vermutes bebericados.

Apareceu uma quadrilha

a caminho de um assalto.

Ficaram todos

(embaixadores e meliantes)

com o movimento entre parêntesis.

Caiu uma chuvada torrencial

e todos se refugiaram 

numa paragem do autocarro.

Horas depois

um dos meliantes deu pela falta

de uns diamantes desviados ao legítimo.

Lembrou-se

do estalão da divina justiça

e de um perdão de mil anos

amaldiçoando a chuva que torrencial

caiu.