22.11.23

#2972

O entardecer desbotado 

destoa do gargalhar assíduo

reivindica 

o silêncio de um ermo.

21.11.23

Oxidação

A infâmia

não nos persegue

não se faz nome nosso

não nos culpa 

por uma gramática mendaz. 

 

Tiramos uma carta ao acaso

os dados são atirados para a cratera

movemos a torre para a frente do bispo

sabemos onde está o sortilégio

só não sabemos como o podemos domar. 

 

É a meã condição

o confisco do ser?

É a dependência do vício

em sucessivas voltas olímpicas,

o campanário da decadência?

 

Arrastamos a página ensombrada

e não resistimos ao seu caudal. 

Oxalá houvesse dentro de nós

uma represa

e não fossem vícios

ou infâmias

a colonizar os dias eleitos. 

Injustiças indocumentadas (240)

Degrau.

De 

grau.

Graúdo.

Degraus

Os degraus 

intermináveis.

Esconjuro

quem se rege 

pela finitude. 

Pressinto

que a escada oferece 

outro lanço de degraus 

assim que toco 

a cumeada. 

Somos

o nosso próprio 

marco geodésico.

Injustiças indocumentadas (239)

Sou contra o mar de rosas

ia acabar com a maresia.

#2971

Não disse que disse

mas desdisse na mesma

só para cozinhar a dúvida

sobre se disse o que disse.

20.11.23

Gatilho

Pensava

que tinha o pensamento

forrado a algemas. 

 

Houvesse

quem desarmadilhasse

o pensamento. 

 

Que de estouvado

tivesse todos os lugares

em vez de ser daninho 

e privado de matéria. 

 

Queria

a certa altura

um pensamento 

virado do avesso. 

 

As cores 

trocadas;

 

dicionários

só os errantes;

 

divergências

todas 

e mais algumas;

 

e lugares novos

que o pensamento

precisava

de aprender 

a pensar

de novo. 

 

O pensamento

reuniu o espólio

e pensou

que o inventário

tem mais de despensamento. 

 

Afinal

o pensamento

só queria hibernação

uma cadeira puída

onde pudesse ser estilhaço

ou uma parede

que não estivesse por caiar

uma tela 

à prova

de preces

como se enviuvasse

e passasse à reforma

mera curiosidade arqueológica

sem chegar a ser

sequer

nota de rodapé. 

 

Não queria ser

a não ser

nostalgia de um conto futuro

lápide pendida sobre os cotovelos

um regaço inteiro

por habitar.

#2970

Tertuliam,

em filosofias avulsas

contra o arsenal da identidade.

19.11.23

#2969

De Juno

não se esperem

copiosas intempéries.

18.11.23

Injustiças indocumentadas (238)

Falamos:

de crimes

a favor da humanidade.

#2968

Nos bolsos puídos

ateia-se 

a memória escondida 

– a memória 

que é a sua própria pária.

17.11.23

O Ministério Público é contra as bibliotecas

Frequentar bibliotecas

passou a ser

uma atividade arriscada:

ninguém agora pode confessar 

que foi à biblioteca tirar notas.

Viver tempo (por oposição a matar tempo)

O efeito balsâmico

de trespassar a fronteira

e saber

que é uma hora mais cedo

de saber

que fiquei uma hora mais novo.

Injustiças indocumentadas (237)

Haveríamos

de ter inveja

da onça

tantos os amigos

que ela 

tem.

 

[Sobretudo um certo primeiro-ministro com prazo de validade acertado]

#2967

O salto vertical

à medida do medo,

uma nota de rodapé

indiferente.

Injustiças indocumentadas (236)

O pé

de semear.

O pé

de cabra.

O pé

de microfone.

Nada

é por 

acaso

 

(se

interessa

para o

caso).

16.11.23

Ubi-qui-da-de

Os dentes do avesso:

congeminava a rebelião

tardia

a impensável bochecha que o devir

escondia;

se fosse pelas espadas travadas

os arrevesados procuradores 

em vez da estultícia

seriam devotos de ingénuos oráculos,

que a demanda do futuro

não é de ficar ao pé de semear. 

Mais logo

(jurou)

cobro aos anjos disfarçados

a tença correspondente

e entrego-me 

incondicionalmente 

à boémia

o meu corpo como se fosse doado

sem ser à ciência.

#2966

O vulto delido

com os dedos puídos

alista-se no inventário das farsas. 

15.11.23

Injustiças indocumentadas (235)

Brincadeira contínua.

A brincadeira continua.

A sério.

Injustiças indocumentadas (234)

De um jornal:

“Mata homem por dívida com 27 anos”.

E fiquei sem perceber 

se era a dívida, 

ou o morto,

que tinha 27 anos?

#2965

Cubro com vergonha

a nudez da fala

e lamento

a privação do silêncio.

14.11.23

Injustiças indocumentadas (233)

Maré-viva,

maré viva,

não sejas morte

na safra alheia.

Sangue e lágrimas (a demissão da angústia)

O sangue confundia-se com lágrimas. 

Os derrames vertiam cicatrizes

a pele era asfaltada 

por tatuagens involuntárias. 

Há quem solte o freio da angústia:

não sabem 

ou não admitem

que a angústia 

não é tão imediatamente involuntária

como as tatuagens herdadas de cicatrizes. 

Despojam-se

como se dessem autoridade à comiseração

e precisassem da tutela dos apiedados

para baixarem a temperatura da angústia

sem tomarem conta do periscópio

que previne que se deslacem do exterior. 

Afocinham

numa mistura putrefeita 

de sangue e lágrimas

e adiam o cais metodicamente generoso

que pavimenta a dança sem regras que precisam

para não serem reféns 

dos seus próprios ardis. 

#2964

Em forma de marco geodésico

sem saber se 

a paisagem intercedia por ele

ou era ele de atalaia à paisagem.

13.11.23

Fogo posto

A fogueira crepita

num fogo 

posto à venda

por nada

por um

fogo posto

que armadilha 

as mãos voluntárias

em tudo um nada

crestadas

por defeito de vontade

de uma vontade por excesso.

A fogueira crepita;

valha 

ao menos

a interdição do Inverno.

#2963

Os socalcos descem até ao rio

são as mãos artesãs

em nome da natureza.

12.11.23

Injustiças indocumentadas (232)

Fora de casa

(mas) 

em trajes maiores.

Injustiças indocumentadas (231)

Desgraça:

desengraça

diz, graça.

#2962

Esta é a mão moratória

a demão que pede vindouros

o presente caiado

com o pejo dos cajados 

sentenciados. 

Avinagrado

A tabela térmica

respira a febre da pele:

as erupções devolvem luz à noite

e não se fale de eclipses

não desembaracem o lagar

onde as uvas fermentam de véspera.

É pelas varandas que as falas se juntam

as casas são uma prisão arrematada

lúgubres, sombrios espasmos de rotina.

 

As pessoas

habituam-se aos hábitos.

 

Não se demovem 

por luares nómadas

ou lances ousados 

que viram o jogo do avesso

os génios sempre adiados.

Só querem a usança

refeições à hora marcada

a purulenta televisão

onde desfilam malquerenças 

e personagens escaninhas. 

O fumo ao longe

não é um atestado de cemitério:

o vento assina as árvores

a durável concessão dos homens

máquinas em barda

a lava da civilização

como se contássemos os quilos de ferrugem

no inventário da abastança. 

 

Não se interpõem os deuses

que também dormem. 

Quisessem mediadores,

encontrá-los-iam nas medas avulsas

a meação que junta as mãos separadas.