25.11.23

#2975

Não há alternativa

à alternativa,

há alternativa.

24.11.23

Manifesto anti-matrioskas

Há personagens

que parecem paridas

de dentro de matrioskas.

Uma eructa

desmultiplica-se em dois

desdobra-se em quarto

em oito, em dezasseis;

até estarmos 

cercados.

 

Um pesadelo é fruta viva 

ao pé da matrioska parideira.

 

O atraso civilizacional

é que ninguém descobriu a cura

das matrioskas que não param de parir.

 

Abaixo as matrioskas

ocas.

Injustiças indocumentadas (241)

Como se diz

bivalve

no Porto:

#2974

Primeiro

entranha-se

segundo

estranha-se.

23.11.23

Dentadura postiça

Sejamos simpáticos:

não é por ser um escarro

que se destina aos escombros

quem dessas palavras proclama.

A desinfestação

tem de ser por igual

sem discriminações. 

Sejamos compreensivos:

a impossibilidade da tolerância

seria uma mácula a abater-se 

e precisamos de saber o que é um escarro

(para dele nos apartarmos).

#2973

O ferro forjado

curva a carne do tempo

atesta o braço imorredoiro

do mar sólido que não tem maré.

22.11.23

Vadios

Papagaios famintos repetem estrofes

sereias sem dote aproveitam-se da maré

um meteorologista angustiado jura o medo

a maresia subleva-se contra a manhã timorata.

 

Distantes cangurus bolçam intoxicações 

bombeiros insones passeiam a farda encardida

generais covardes fogem das más companhias

gatos que deixam de ser vadios miam por companhia.

 

Candidatos à indiferença erram na estação 

autodidatas dispensam livros para a ciência

tutores de costumes adiam arsenais corrompidos

cultores amoedados rapam arrogância de bolsos.

 

Ativistas amestrados perdem-se no labirinto

narizes narram aranhas e espirram alergias

almirantes esposados pela ira posam urros 

as boas maneiras ficaram à porta dos estultos.

#2972

O entardecer desbotado 

destoa do gargalhar assíduo

reivindica 

o silêncio de um ermo.

21.11.23

Oxidação

A infâmia

não nos persegue

não se faz nome nosso

não nos culpa 

por uma gramática mendaz. 

 

Tiramos uma carta ao acaso

os dados são atirados para a cratera

movemos a torre para a frente do bispo

sabemos onde está o sortilégio

só não sabemos como o podemos domar. 

 

É a meã condição

o confisco do ser?

É a dependência do vício

em sucessivas voltas olímpicas,

o campanário da decadência?

 

Arrastamos a página ensombrada

e não resistimos ao seu caudal. 

Oxalá houvesse dentro de nós

uma represa

e não fossem vícios

ou infâmias

a colonizar os dias eleitos. 

Injustiças indocumentadas (240)

Degrau.

De 

grau.

Graúdo.

Degraus

Os degraus 

intermináveis.

Esconjuro

quem se rege 

pela finitude. 

Pressinto

que a escada oferece 

outro lanço de degraus 

assim que toco 

a cumeada. 

Somos

o nosso próprio 

marco geodésico.

Injustiças indocumentadas (239)

Sou contra o mar de rosas

ia acabar com a maresia.

#2971

Não disse que disse

mas desdisse na mesma

só para cozinhar a dúvida

sobre se disse o que disse.

20.11.23

Gatilho

Pensava

que tinha o pensamento

forrado a algemas. 

 

Houvesse

quem desarmadilhasse

o pensamento. 

 

Que de estouvado

tivesse todos os lugares

em vez de ser daninho 

e privado de matéria. 

 

Queria

a certa altura

um pensamento 

virado do avesso. 

 

As cores 

trocadas;

 

dicionários

só os errantes;

 

divergências

todas 

e mais algumas;

 

e lugares novos

que o pensamento

precisava

de aprender 

a pensar

de novo. 

 

O pensamento

reuniu o espólio

e pensou

que o inventário

tem mais de despensamento. 

 

Afinal

o pensamento

só queria hibernação

uma cadeira puída

onde pudesse ser estilhaço

ou uma parede

que não estivesse por caiar

uma tela 

à prova

de preces

como se enviuvasse

e passasse à reforma

mera curiosidade arqueológica

sem chegar a ser

sequer

nota de rodapé. 

 

Não queria ser

a não ser

nostalgia de um conto futuro

lápide pendida sobre os cotovelos

um regaço inteiro

por habitar.

#2970

Tertuliam,

em filosofias avulsas

contra o arsenal da identidade.

19.11.23

#2969

De Juno

não se esperem

copiosas intempéries.

18.11.23

Injustiças indocumentadas (238)

Falamos:

de crimes

a favor da humanidade.

#2968

Nos bolsos puídos

ateia-se 

a memória escondida 

– a memória 

que é a sua própria pária.

17.11.23

O Ministério Público é contra as bibliotecas

Frequentar bibliotecas

passou a ser

uma atividade arriscada:

ninguém agora pode confessar 

que foi à biblioteca tirar notas.

Viver tempo (por oposição a matar tempo)

O efeito balsâmico

de trespassar a fronteira

e saber

que é uma hora mais cedo

de saber

que fiquei uma hora mais novo.

Injustiças indocumentadas (237)

Haveríamos

de ter inveja

da onça

tantos os amigos

que ela 

tem.

 

[Sobretudo um certo primeiro-ministro com prazo de validade acertado]

#2967

O salto vertical

à medida do medo,

uma nota de rodapé

indiferente.

Injustiças indocumentadas (236)

O pé

de semear.

O pé

de cabra.

O pé

de microfone.

Nada

é por 

acaso

 

(se

interessa

para o

caso).

16.11.23

Ubi-qui-da-de

Os dentes do avesso:

congeminava a rebelião

tardia

a impensável bochecha que o devir

escondia;

se fosse pelas espadas travadas

os arrevesados procuradores 

em vez da estultícia

seriam devotos de ingénuos oráculos,

que a demanda do futuro

não é de ficar ao pé de semear. 

Mais logo

(jurou)

cobro aos anjos disfarçados

a tença correspondente

e entrego-me 

incondicionalmente 

à boémia

o meu corpo como se fosse doado

sem ser à ciência.

#2966

O vulto delido

com os dedos puídos

alista-se no inventário das farsas. 

15.11.23

Injustiças indocumentadas (235)

Brincadeira contínua.

A brincadeira continua.

A sério.

Injustiças indocumentadas (234)

De um jornal:

“Mata homem por dívida com 27 anos”.

E fiquei sem perceber 

se era a dívida, 

ou o morto,

que tinha 27 anos?

#2965

Cubro com vergonha

a nudez da fala

e lamento

a privação do silêncio.

14.11.23

Injustiças indocumentadas (233)

Maré-viva,

maré viva,

não sejas morte

na safra alheia.

Sangue e lágrimas (a demissão da angústia)

O sangue confundia-se com lágrimas. 

Os derrames vertiam cicatrizes

a pele era asfaltada 

por tatuagens involuntárias. 

Há quem solte o freio da angústia:

não sabem 

ou não admitem

que a angústia 

não é tão imediatamente involuntária

como as tatuagens herdadas de cicatrizes. 

Despojam-se

como se dessem autoridade à comiseração

e precisassem da tutela dos apiedados

para baixarem a temperatura da angústia

sem tomarem conta do periscópio

que previne que se deslacem do exterior. 

Afocinham

numa mistura putrefeita 

de sangue e lágrimas

e adiam o cais metodicamente generoso

que pavimenta a dança sem regras que precisam

para não serem reféns 

dos seus próprios ardis.