6.12.23

Cemitérios ao longe

Não posso dar os sentimentos

não quero deles ficar privado.

Não sei se é pretexto

para pesarem tanto as elegias

ou apenas o medo da morte

o algoz injusto

feitor de vidas sempre breves

tradutor do efémero malquisto.

 

Os cangalheiros autoimpostos

que se entreguem 

ao embalsamento a destempo

para que não sobrem nódoas

sobre a pele difamada 

dos ainda vivos.

 

Reflexão crítica:

ao que é dado a testemunhar 

das desandanças das vidas

por este andar 

ainda convencem

que a morte é o menor dos custos.

#2987

Corres 

por dentro de um fóssil

contido num silo 

à prova de fora.

5.12.23

Injustiças indocumentadas (250)

Não tem graça

cair

em desgraça.

Não é desgraça

não cair

em graça.

Viva a dinastia, viva!

Enchem-se ruas e bancadas

compram-se confettis 

assobiam os foguetes

traduzem-se elogios:

 

vem aí a dinastia

 

sirenes estridentes

a precederem-na

espadaúdos espécimes

para a ordem garantirem

plumitivos histriónicos

de microfone em riste

o povo arrebanhado

em edital vocal

fatos cinzentos

discretamente exuberantes

(chiu: são dos serviços secretos

não contes o segredo)

e finalmente

a dinastia regular

do mexicanizado regime

um regime sem dieta

gordo e gordo e gordo

para prebendas distribuir

por um séquito

que alimenta

outro séquito

e mais sequitozinhos

até não sobrar vivalma

à mesa do orçamento

no banquete onde a dinastia

arrota um divino direito.

#2986

O algodão é doce

e isso não é uma doce ilusão

que aprisiona a infância.

Injustiças indocumentadas (249)

Alto gabarito.

Alto,

gabarito.

4.12.23

Embaixadores

Não somos as sombras onde se escondem os escombros. Somos a lucidez, a manhã clara sem medo da chuva, a lava de onde procedem as quimeras. Somos a estatura inteira que mede o aniversário do futuro. Não somos destroços numa mordaça a vontade. Somos a maré alta de onde temos atalaia no sangue indomável. A desinquietação com dedos mágicos por cima, uma feitoria sem embaixadores de medo, nós, o peito pleno em vez de bandeiras, o hino desconhecido dos outros, nós.

O verbo truncado

É desta extorsão de mim

que arrebato 

o crepúsculo haurido. 

 

As mãos suadas extraem da terra

os sorrisos propedêuticos

as limalhas atiradas ao acaso

contra os olhos ilhéus 

dos operários. 

O que dizer

destes dias circenses

em que muitos se disfarçam deles próprios

fingindo 

que se orquestram na finitude sem regaço?

 

Ah!

o estipêndio joga-se em tabuleiros luxuosos

e são mãos sem rosto 

que esfregam dedos extasiados

e esperam

com a ilusão dos desenganados

que seja sua a sorte vez

eles que nem sabem 

do princípio geral da corrupção. 

 

Os bichos remoem-se

indiferentes

numa gesta improvável

no cesto onde se guardam as frutas

no berço onde gastas se aprendem palavras

contra o fundo poço onde se escondem silêncios. 

 

A combustão sobe a palco

altiva

pergunta quem quer um tumulto de graça

não sem desaprender a graça avinagrada

o sempre distante braço de ferro

que se indispõe 

contra abastados fornecedores de esperanças. 

 

Prossigo a pauta dos dias

eu que continuo a não saber ler música

e persigo vultos que seguem de rastos

como se lambessem a lama 

e depois a bolçassem sobre os distraídos. 

Prossigo

que as demandas se consultam na escuridão

intérpretes da alergia à simpatia gasta

antes preferindo cozinhar as sumptuosas farsas

sozinho no epicentro da periferia

roendo as unhas vestidas de cal

dizendo em apenas murmúrios

um dó-ré-mi apalavrado 

no sofá dos aristocratas. 

 

E se em sonhos me dissolvi

foi porque me esqueci de dormir

escondido na vela hirsuta de um velho veleiro

em mares de nomes que não sei

empunhando o sabre apodrecido

como convém

a um apátrida de guerras

magnificamente condoído na estatura meã

de tudo à volta.

#2985

O nauta

não se esconde do mar.

Ninguém 

se esconde da casa.

3.12.23

#2984

Cuido do endereço

sem que pareça

um adereço.

Se me enfureço

deixo o palco ao olhar

que endureço.

Injustiças indocumentadas (248)

Voltar

com a palavra 

à frente.

Narrativa

O poeta

não tem o dever

de explicar o poema.

2.12.23

Injustiças indocumentadas (247)

Alvíssaras são oferecidas

por umas estribeiras

sem paradeiro.

#2983

No palco por perto

onde as cicatrizes se avessam

a pele ruidosamente nova

amanhece.

Injustiças indocumentadas (246)

Pois não.

(Isto não é

o Texas.)

1.12.23

#2982

Não falo de mortos

eles não leem epitáfios.

30.11.23

Apuro

O nefelibata apeado

antes de trair a fronteira

juntou as mãos às travessuras dinásticas

como se não esperasse absolvição

e aos lençóis freáticos 

roubasse as lágrimas que não tinha. 

Não se importava de ser pária

não se incomodassem com os andrajos

a colossal farsa que encenava

acenando às lívidas mães pela ausência dos filhos. 

Ele sabia dos gatos avulsos

sabia

que eram sentinelas à espera da noite

e que ninguém os acusava 

de serem reféns do medo

 

Eles é que sabiam

montados no rosnar altivo

príncipes autoritários que esventram as presas. 

 

Na véspera da manhã

diletante

assobia ao silêncio

no apartado longínquo da solidão

fugindo da sua cólera 

antes do testamento dos anciãos ser lei

antes que seja cedo para ser tarde.

Injustiças indocumentadas (245)

É a estúpida, 

economia.

#2981

Mondas

a erva daninha

debalde.

29.11.23

Para quem quiser ser fotografia

Se ser

é viver dentro de uma fotografia

reclamem-se créditos para o flash

sem obedecer a conspirações

nem recuar aos suores frios

talvez

beijar os dedos do precipício

pode ser que do outro lado

verticalmente caídos

encontrem a madeira para a moldura.

E só então

fotografias de pleno direito serão

com direito a moldura

e tudo.

#2980

A falésia compõe-se, 

escondida 

no avesso do olhar.

Injustiças indocumentadas (244)

Nó górdio,

nó gordo, 

quem asfixias tu?

Tradução simultânea

Fugi aos olhos do mundo

por detestar

que os olhos do mundo

estivessem de atalaia

e eu

da mais profunda solidão

dispensasse essa companhia. 

 

Esperei pela visibilidade da manhã

para depor a meu favor

e não quis saber que apeado seria

se fosse esse meu gesto. 

 

Li os editais admiráveis

os que entronizam os reis de nada;

subi 

sem tibieza 

ao tribunal inferior

sem medo dos medos entoados

só com um garfo metido entre as ideias

desarrumando o futuro imperfeito

numa opereta eloquente. 

 

Os arbustos diziam o caminho

sobre as pedras sucumbidas

contra os rostos silhuetas tomados ao acaso

esse, o imaterial bocejo

intemporal

a senha apalavrada dos segredos quitados. 

 

Não digam

contra as probabilidades 

que amanhã é Inverno

não conspirem 

contra os obstetras que parturiam o mundo:

 

não lhes digam

que deram existência a um nado-morto

e que todos

os que por aqui diligenciamos tempo

fingimos o embaraço de tanto ardil. 

 

Sem esta força arremessada contra os algozes

não somos nada

não temos nada

e enfim desaparafusados do siso

assisamos outras comendas

assinantes de uma tença desconhecida

o congeminado sol por batizar. 

 

O sol

a que ninguém

verte o sal das feridas que esconde

o sol mátrio que afirma a gramática

e habita o fundo métrico 

das orquídeas em devir.

28.11.23

Eco-pesadelo

Um dia

a fauna tornou-se rebelião

e só os vegetarianos tiveram salvos-condutos. 

A ovação repartida

disse

que fauna e vegetarianos eram uma coligação

e os últimos só eram solidários

com a fauna. 

 

Ninguém podia falar de genocídio. 

 

Ninguém subiu alto no mastro do protesto

porque já só havia

os aliados da fauna

e esses falavam em uníssono. 

 

Mas depois acordei

e intuí tratar-se de um pesadelo. 

Afinal

fora uma noite

(e não um dia).

Injustiças indocumentadas (243)

Ninguém sabe

a que sabe a vingança

quando é servida quente.

#2979

A tempestade 

corre uma cortina 

uma acrisolada voz 

abate-se contra os inocentes.

27.11.23

Tira-nódoas

Desaparece a custódia dos vultos

a leveza de uma nuvem

dissolveu-a. 

O cimento fraco foi cercado

uma viuvez intensa fareja a farsa

prepara-se para anunciar

que é fraco

o cimento. 

E as pessoas

tão temerárias 

tremem como se estivesse frio

bebem o suor do avesso

como se fosse um antídoto

não sabem de quê. 

Se este pudesse ser um retiro

seríamos procuradores de uma moldura;

mas é uma miragem

à espera de ser fruto maduro

ou à espera

de depressa se tornar bolorento

em forma de colheita tardia. 

Não há nada de útil

num tira-teimas. 

Antes um tira-nódoas

que devolve uma alvura 

apenas farsante.

Noite sem medo

À noite que se adia. 

À pele quente que se entrega nos braços. 

Ao olhar inquieto. 

Às estrofes que se congeminam no silêncio. 

Ao mar que se agita no avesso da memória. 

À lava que se ajuramenta no beijo da memória futura. 

Aos corpos entretecidos na coreografia sem nome. 

À manhã, que levita entre os olhares sem medo. 

#2978

Antes do tempo ausente

a imersão em águas fundas

as latitudes todas 

numa mão fechada.

26.11.23

#2977

Sistematicamente desistente,

essa fora a sua grande vitória.