Quem lambe botas
fala língua de trapos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Os corpos esbracejam
multidões ansiosas por um aval
os seus abusivos xailes cobrem o silêncio.
Não há quem desmate a floresta sem luar
não há ninguém no arrumado altar das fugas
e os bardos já não têm repertório
vencendo, enfim,
o silêncio.
Os cálices maduros sobem às bocas.
Desaprenderam a nostalgia
e agora
saciados
compõem as fragas por se despenha o medo.
Sem céu por abrir ao luar
sobra a meada de neve
o longo apeadeiro onde se consomem as almas
no vindouro espelho que espartilha o passado.
O ontem
deixou uma amálgama retorcida
nomes e lugares e rostos e casas
embaraços tenentes da matéria puída
toda uma constelação de lúgubres lugares
à espera de lugar
na sepultura.
À gramática do Outono:
as folhas desmaiam
juram que voltam a ser vulcões.
Deixam nuas as árvores
remexidas pelo Inverno impetuoso.
Não há nada mais inteligente
do que o Outono.
Mando no precipício:
não são os avestruzes vetustos,
os cicerones dos campos minados,
deduzem
que serão maltrapilhas as cabeças
assim encestadas na toca
onde desamanhece o lobo censitário.
Se por precipício se entender
a mando de uma metáfora
acendem-se as sirenes
cimentando o sonoro protesto
tirado à prova dos nove entretanto.
Se forem contumazes
os boémios adestrados
seja dada corda à cantilena arcaica
montadas as memórias altivas
o autêntico sublinhado da melancolia.
Não é por erro
a carta da melancolia que sobe à mesa:
podiam os desalentados do presente
abrilhantar a nostalgia
tudo o que conseguiram
foi três pétalas de melancolia
no sopé do precipício
que tinha ares de miradouro.
As mãos
tocam a carne suada,
levam à boca
a alvorada
que torna o dia opulento.
Na coreografia sem roteiro,
os corpos ensaiam o auge.
Agarram-se
aos dedos máximos
que devolvem
a claridade anestesiada.
Se as paredes soubessem,
eram poetas.
Se o fundo for o magma
e as fruteiras colhem a madurez
os rostos cerrados proveem o adiamento
e do luar apeado não houver regime
as jornadas serão curadorias das bocas sedentas
o calendário previsível
ou apenas o vinho rasteiro ante dois dedos
de conversa.
A iluminação
dos combustíveis fósseis
– parece mesmo que disse
a repórter na televisão.
Sem o cimento
as varandas são precipícios
sem ninguém que se sirva do arnês
o medo anónimo subindo pelo gelo
os casacos remediados que não chegam.
Sem as mãos atrevidas
as cordilheiras são miragens
chamam os sentinelas a jogo
sobre o sabre que cauteriza as veias.
Desfeito o caudal desprevenido
atropela os sóbrios mascotes dos costumes
perdido entre a incógnita do medo
e a indigência dos procuradores da angústia.
Não posso dar os sentimentos
não quero deles ficar privado.
Não sei se é pretexto
para pesarem tanto as elegias
ou apenas o medo da morte
o algoz injusto
feitor de vidas sempre breves
tradutor do efémero malquisto.
Os cangalheiros autoimpostos
que se entreguem
ao embalsamento a destempo
para que não sobrem nódoas
sobre a pele difamada
dos ainda vivos.
Reflexão crítica:
ao que é dado a testemunhar
das desandanças das vidas
por este andar
ainda convencem
que a morte é o menor dos custos.
Enchem-se ruas e bancadas
compram-se confettis
assobiam os foguetes
traduzem-se elogios:
vem aí a dinastia
sirenes estridentes
a precederem-na
espadaúdos espécimes
para a ordem garantirem
plumitivos histriónicos
de microfone em riste
o povo arrebanhado
em edital vocal
fatos cinzentos
discretamente exuberantes
(chiu: são dos serviços secretos
não contes o segredo)
e finalmente
a dinastia regular
do mexicanizado regime
um regime sem dieta
gordo e gordo e gordo
para prebendas distribuir
por um séquito
que alimenta
outro séquito
e mais sequitozinhos
até não sobrar vivalma
à mesa do orçamento
no banquete onde a dinastia
arrota um divino direito.